domingo, 30 de outubro de 2016

A Musa de Camões. Maria Helena Ventura. «Não, não... Estrangulo o mesmo grito angustiado que não sei de onde sai, aonde me leva. Sei apenas que ainda dói na ausência»

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O pulsar lento da vida
«(…) Foi esperada com muita ansiedade, depois acolhida com manifestações de júbilo. Repetiam-se pelas igrejas de Lisboa cerimónias de agradecimento por ter querido voltar, tão genuínas que lhe demonstravam quanto era amada pelo povo. Numa sagaz tessitura para justificar a decisão de não a deixar partir, a família real tinha conseguido a adesão do reino. só que o reino não aderia à ideia de reter a sua Infanta pelas mesmas razões da família real. Devotava-lhe um carinho respeitoso desde que nascera, mais ainda quando ficara sem a mãe, era esse sentimento puro que ditava a preocupação com o seu destino, e nenhum outro. Passados dias, no mês de Fevereiro de 1558, dona Leonor morria em Televuera, perto do ponto de encontro, um ano depois de João III ter deixado o mundo. Falou-se de um estado febril de progressão repentina, estranho. A rainha dona Catarina parecia acusar pouca emoção, mas dois dos outros irmãos não haviam de resistir muito tempo ao desgosto de a perderem. Carlos V já afastado em San Justo, num convento onde vivia como no fausto do paço, e Maria da Boémia e Hungria, partiam também para sempre, pouco depois. A Senhora Infanta andava mais misteriosa desde aquele encontro, embora não parecesse apanhada de surpresa, com a notícia. É como se esperasse aquela fatalidade, ainda que no íntimo alimentasse a esperança de um engano. Nem uma semana tinha vivido a mãe, depois que se abraçaram... Entrou-lhe uma tristeza imensa, igual vontade de se isolar no jardim ou na câmara privada onde as aias iam encontrá-la deitada, às escuras. Porem foi depurando a lembrança daquele momento único, e com a serena imagem foi vivendo os seus dias organizados como dantes. Uma única vez, depois de tantos anos, conseguira ver aquela por quem tanto chamara, em menina.
Ficava ainda mais rica, como sua única herdeira, contudo muito mais pobre de afectos verdadeiros. Dez anos de luto tinham-lhe arrancado as pessoas mais amadas: sobrinhos, damas, o padrasto, até o irmão de quem, apesar das diferenças e da mágoa, guardava respeitosa lembrança. E agora a mãe, que um acaso trouxera e tão pronto se fora. Mas havia ainda um luto diferente, feito de tristeza e ausência, que não sendo para sempre, como esperava, era um luto por demais pesado: o homem que conhecera em estranhas circunstâncias, aquele que lhe dissera o que tempo algum havia de apagar, vagueava muito longe do reino, do alcance da sua vista. Havia de voltar enfraquecido, quase indiferente, para mais lhe acentuar a dor... Se não rasuram o afecto, a solidão e a distância vão-no atenuando. Elas e demais desencontros que em seu redor se forjam, como se o caos fosse meticulosamente organizado com vista a um fim preconcebido. Portugal estava envolto em brumas de confusão e discórdia, em breve sem herdeiro directo a um trono ameaçado. Avó e neto não se entendiam quanto aos destinos do reino e à forma de reinar. Ela intolerante em suas convicções, mais fiel a Castela do que a Portugal. Ele não menos intolerante, com traços inquietantes de personalidade, a confusão mental aparente a fazer malograr as tentativas de casamento que lhe eram propostas. Sua Senhoria já somava os desgostos de uma vida inteira, não precisava de mais apreensões para se lhe extinguirem as forças. O poeta voltou, a pobreza de meios a endurecer-lhe os modos, a cavar maior distância. Até que caiu no leito para sempre e chegou ao fim, talvez ao princípio de tudo....

O Outono da Saudade
Depois de matar não mata, ainda, a morte. Sou eu que o digo, apesar do ânimo tão frio como a pedra donde me levanto, a manhã a raiar mais luminosa. Estou no lugar da saudade aonde sempre torno, às voltas com o sentido desta palavra com mil caras desconhecidas e ainda assim tão íntimas, que tanto acariciam como trespassam de suave dor. Sinto que traí a transparência do breve relato mental de há pouco, ao afastar certos factos que procuro rasurar, negando-os sempre às lembranças. Será possível que ainda me causem calafrios, depois de tanto tempo? A pretensão de olvidar não os impede de assomarem, como não evita que doam. E continuam a revisitar-me, a intervalos, em reposições daquela noite medonha. Tenho agora uma panorâmica do salão de recepções, discretamente iluminado, depois a chegada da Infanta com os cabelos soltos em camisa de pano alvíssimo, olhos muito abertos ora para mim ora para o guarda imobilizado no chão, sem poder dar crédito ao que via. E ainda a chegada das damas, das camareiras e criados, a nitidez de passos apressados a afastarem-se pelas escadas até ao pátio interior... Queria a persistência dos melhores momentos, mas são sempre fracturas de tempo como esta que sobressaem. Não querendo avisto o rosto dos homens antes tidos como piedosos, de repente façanhudos, em atitudes conformes à vontade de Suas Altezas, decerto mais da rainha. Sinto ainda restos do medo corajoso daquele dia quando os surpreendi e este corpo, então ágil, escapava por detrás do reposteiro, pelos corredores sombrios em silhuetas de sombra prolongadas pela luz hesitante dos pálidos brandões. Não, não... Estrangulo o mesmo grito angustiado que não sei de onde sai, aonde me leva. Sei apenas que ainda dói na ausência, sacudido por múltiplos pesadelos que não deixam descansar em paz e me fazem pingar suor». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT