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e wikipedia
Histórias
Naturais
«Se não acreditais, muito me aflijo, mas um
homem de bem, um homem de bom senso deve acreditar sempre no que se lhe diz e
no que lê. Não o diz Salomão, Provierbiorum XIV: Innocens credit omni verbo etc.? Por minha parte, nada encontro escrito
nos livros sagrados que seja contra isso. Mas, se a vontade de Deus assim o
tivesse determinado, ainda o acharíeis absurdo? Oh! por favor, não perturbeis
nunca os vossos espíritos com esses vãos pensamentos, pois vos afirmo que para
Deus nada é impossível e, se ele quisesse, as mulheres passariam a parir pelo
ouvido. Baco não foi gerado pela coxa de Júpiter? E Minerva não nasceu, pelo ouvido, do
cérebro de Júpiter? Castor e
Pólux, da casca de um ovo posto e quebrado por Leda? Mais admirados e
espantados ficaríeis ainda se eu vos citasse, agora, todo o capítulo de Plínio
sobre os partos estranhos e contra a natureza. Bem vedes que não sou um
mentiroso tão ousado como ele foi. Lede a sétima parte de sua História
natural, cap. III, e não me futriqueis
mais o juízo.
Os mnemagogos
O doutor
Morandi (que ainda não se habituara a ser chamado de doutor) desceu da viatura
com a intenção de conservar-se incógnito por no mínimo dois dias, mas logo viu
que seria impossível. A proprietária do café Alpino o acolhera com neutralidade
(evidentemente não era muito curiosa, ou não muito arguta); mas, pelo sorriso
deferente, maternal e levemente debochado da dona da tabacaria, ele entendeu
que já era o doutor novo, sem possibilidade de adiamentos. Devo ter o diploma
escrito na cara, pensou: tu es medicus in aeternum, e, o que é pior,
todos vão perceber. Morandi não tinha nenhum gosto pelas coisas irrevogáveis e,
naquele momento, sentia-se inclinado a ver naquela história uma grande e
interminável aborrecimento. Algo parecido com o trauma do nascimento, concluiu
de modo não muito coerente. No entanto, como primeira consequência do anonimato
perdido, era preciso encontrar Montesanto, sem mais demoras. Voltou ao café
para retirar da mala a carta de apresentação e se pôs à procura do endereço que
estava no cartão, cruzando a cidade deserta sob um sol inclemente. Chegou ao
lugar com dificuldade, depois de infinitos giros inúteis; não quis perguntar a
rua a ninguém, porque nos rostos dos poucos que avistou pelo caminho pareceu
discernir uma curiosidade malévola. Esperava que a placa de identificação da
casa fosse velha, mas a achou mais velha que qualquer expectativa, coberta de
ferrugem e com o nome quase ilegível. Todas as persianas da casa estavam
fechadas, e a baixa fachada, descascada e sem cor. À sua chegada, houve um
rápido e silencioso acender de lâmpadas. Montesanto em pessoa desceu e veio
recebê-lo. Era um velho alto e corpulento, de olhos míopes e vivos num rosto de
traços gastos e pesados: movia-se com a segurança silenciosa e maciça dos
ursos. Estava de mangas curtas, sem colete: a camisa estava puída e não parecia
limpa. Pela escada e em cima, no estúdio, estava fresco e quase escuro.
Montesanto sentou-se e ofereceu uma cadeira a Morandi, especialmente incómoda. Vinte
e dois anos aqui dentro, pensou Morandi com um arrepio mental, enquanto o outro
lia sem pressa a carta de apresentação. Olhou em redor, enquanto seus olhos se
habituavam à penumbra. Sobre a escrivaninha, cartas, revistas, receitas e
outros papéis de natureza indefinível, todos amarelados e amontoados numa pilha
impressionante. Do tecto pendia um longo fio de aranha, apenas visível pela
poeira que o envolvia, balançando molemente aos sopros imperceptíveis da brisa
meridiana. Um armário envidraçado com poucos instrumentos antigos e poucas
garrafinhas nas quais os líquidos tinham corroído o vidro, assinalando o nível
que por muito tempo haviam conservado. Na parede, estranhamente familiar, a grande
moldura fotográfica dos Laureandi Medici 1911, bem conhecido dele: aí está o
rosto quadrado e o queixo forte de seu pai, Morandi sénior; e logo ao lado (ai,
como seria difícil reconhecê-lo!) o aqui presente Ignazio Montesanto, magro,
nítido e espantosamente jovem, com ar de herói e mártir do pensamento, tão ao
gosto dos formandos da época. Após a leitura, Montesanto pousou a carta sobre o
monte de papéis da escrivaninha, onde ela camuflou-se perfeitamente. Bem, disse
em seguida, estou muito contente que o destino, a sorte..., e a frase acabou
num murmúrio indistinto, seguido de um longo silêncio. O velho médico inclinou
a cadeira sobre as pernas posteriores e dirigiu o olhar para o tecto. Morandi dispôs-se
a esperar que o outro retomasse o discurso; o silêncio já começava a pesar
quando Montesanto retomou subitamente a fala. Falou por muito tempo, a
princípio com muitas pausas, depois com mais rapidez; a sua fisionomia se ia
reanimando, os olhos brilhavam ágeis e vivos no rosto desfeito. Surpreso,
Morandi dava-se conta de experimentar uma nítida e crescente simpatia pelo
velho. Tratava-se evidentemente de um solilóquio, um grande devaneio que Montesanto
estava concedendo. Para ele as ocasiões de falar (e se via que sabia falar e
que conhecia a importância disso) deviam ser raras, breves retornos a um antigo
vigor de pensamento agora talvez perdido». In Primo Levi, 71 Contos, 1966, 1971,
Companhia das Letras, colecção Listrada, 2005, ISBN 978-853-590-757-5.
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