Cortesia
de wikipedia e jdact
«Ao
longo dos tempos, um inquietante enigma paira sobre Santiago de Compostela: a
quem pertencerão os restos mortais que ali se cultuam? Na verdade, Tiago
Zebedeu foi o primeiro dos apóstolos a ser martirizado, em Jerusalém, onde foi
sepultado. É o único cuja morte vem documentada na Bíblia, no ano 44. Contudo,
oito séculos depois, nasceu na Galiza uma prodigiosa lenda, após as visões de um
eremita que viu luzes estranhas num bosque, enquanto se ouviam cânticos de
anjos (por volta do ano 820). O bispo Teodomiro de Iria Flavia (actual Padrón)
visitou o lugar e encontrou uma velha tumba com restos humanos e atribuiu-os ao
apóstolo Tiago e a dois dos seus discípulos. A lenda floresceu e, mais tarde,
ampliou-se, com menção de que o corpo viajara miraculosamente num barco de
pedra, guiado por anjos, ao longo de sete dias, até à referida Iria Flavia.
Segundo a mesma, ali foi desembarcado e levado até à actual Compostela. Assim,
durante quase oitocentos anos, existiu um vazio sobre a veneração do corpo de Santiago
em Compostela. Porém, uma outra perturbante tradição, mais bem documentada,
narra que, no final do século IV, chegou pelo mar a Iria Flavia o corpo do
líder de um movimento carismático e espiritual com forte implantação popular na
Hispânia romana e os de dois homens que o seguiam, decapitados pela sua fé.
Dali, terão sido trasladados para o seu sepulcro, acompanhados por uma multidão
de seguidores. O povo imediatamente atribuiu-lhes fama de santos e mártires e
passou a fazer devoção, peregrinação e os juramentos mais solenes sobre os seus
túmulos, invocando o seu nome. A força do movimento perdurou na Galécia até à chegada
dos muçulmanos, apesar de sucessivos concílios e acções para o exterminar. Durante
muitos séculos, o líder do movimento foi considerado um herege pela Igreja.
Porém, as recentes descobertas dos seus escritos (em Würzburg, Alemanha) vieram
pôr em causa a justiça da perseguição e do esquecimento a que foi votado
durante cerca de mil e seiscentos anos. E reputados autores e historiadores
passaram a perguntar-se: afinal,
quem está sepultado em Compostela? E se o culto que ali se presta for o maior
paradoxo da história do ocidente? Como começou esse culto? E outros a
questionarem-se: qual o sentido das
peregrinações a Compostela?
A
noite caía nas graníticas ruelas de Santiago de Compostela, quando um andrajoso
peregrino, curvado sobre um bordão, seguia em direcção à catedral. Era um homem
sem idade, franzino, com uma verruga no queixo, e que percorrera milhares de
quilómetros para chegar a tempo. A sua única companhia era um rafeiro que se
lhe juntara em Bordéus. Vossa Excelência, acorde! A porta do quarto do
arcebispo de Compostela estremecia com a força dos nós dos dedos do ofegante
cónego Labin. O arcebispo Miguel ressonava, cansado de três noites sem dormir.
Os vagos ruídos que lhe entravam no sono soavam-lhe a vozes do Além. Atrás
delas, um exército de demónios preparados para o julgar pela obsessão que lhe
aguilhoava o espírito. Senhor arcebispo, responda, por favor! Fora um homem
desalentado que se deitara, logo a seguir às Completas. Rezara-as mecanicamente,
sem prestar atenção ao sentido dos salmos. A cabeça estralejava de dor. Colocara
tantas esperanças na descoberta que mudaria o rumo do arcebispado compostelano,
e tudo em vão! Mandara escavar no meio do deambulatório, na cripta, na entrada,
na base do Pórtico da Glória e na superfície do presbitério ao lado do
Evangelho, à frente do altar-mor. Apenas descobrira desânimo e desalento. Os
sonhos traziam-lhe a figura de José Canosa, o deão do cabido, escarnecendo de
si num julgamento presidido por um juiz sem rosto. Senhor cardeal! Labin nunca
o houvera feito, mas decidiu entrar de rompante no quarto, desesperado com a
ausência de resposta. Soltem-me, eu não fiz nada! Sou eu! Acalme-se, por favor!
O que se passa, Labin?! O que fazes aqui?!, perguntou, estremunhado,
sentando-se na beira da cama e tirando o capucho de dormir. Encontrámos!
Encontrámos um túmulo! Ao bater a meia-noite, os sinos da catedral repicavam no
coração do zeloso arcebispo de Compostela. Ao quarto dia de nocturnas
escavações, o que ouvia era, afinal, a voz de um anjo. Atordoado, vestiu-se à
pressa. Não tardou a cruzar, em passos largos, a praça do Obradoiro, à frente
de Labin. Parou, subitamente, com o aparecimento do vulto nocturno.
Ahhh…,
que susto! Vá, chega-te para lá! Isto são horas para estar aqui?!, gritou o cardeal,
ajeitando o barrete quadrado, da forma romana. Desculpe, acabo de chegar…, respondeu
o decrépito peregrino, com sotaque estrangeiro. Com a pressa de entrar no
templo, dom Miguel nem reparara que chovia copiosamente, muito menos se tinha
apercebido do homem que lhe surgira à frente, no meio da noite e vindo do nada.
Este parece que adivinhou o dia!, disse para Labin, recomposto e de sorriso
aberto, enquanto subiam a passo largo a escadaria de acesso ao Pórtico da
Glória. O cão cheirou as pernas dos clérigos e latiu. O romeiro coçou a verruga
e acomodou o chapéu gasto de aba larga, completamente ensopado. Sim, adivinhei
o dia…, comentou para o cachorro, enquanto lhe afagava a cabeça, já os dois
clérigos seguiam para o destino. Sabes bem que sim, Diógenes. O bicho abanou a
cauda e latiu de novo.
Os
dois clérigos já não ouviram a resposta, nem prestaram atenção ao enigmático
sorriso do peregrino que as sombras da noite escondiam. Entraram no templo
esventrado em vários pontos e correram para junto do altar-mor. As vozes
excitadas ecoavam ao fundo. Vislumbraram Antonio López Ferreiro que, juntamente
com José Labin, estava encarregado da direcção das escavações, ao lado do
mestre de obras Manuel Larramendi, do pedreiro Juan Nartallo e de um marquês
galego, amigo do cardeal e que, a pedido deste, acompanhava os trabalhos desde
o primeiro dia. O que aconteceu por aqui, amigos? Desta vez, senhor cardeal,
parece que a sorte nos bateu à porta. Santiago fez mais um milagre, respondeu
López Ferreiro. Os archotes deixavam adivinhar o brilho nos olhos daquele
homem, tão interessado na arqueologia, antiguidades e tudo o que respeitasse à
velha tradição compostelana.
Vá,
Nartallo, conta lá ao senhor cardeal o que descobriste! Depois de retirarmos a
lousa, debrucei-me no buraco e vi um túmulo que parece ser de pedra e tijolos,
respondeu um homem moreno, baixo e ralo de cabelos, com as mãos e a cara sujas
de pó. Está lá no fundo! Só um?!, perguntou o cardeal, apreensivo. Era suposto
serem três… Hummm… este pode ser o primeiro. Ou, quem sabe…, dom Miguel coçava
o queixo, enquanto pensava. Vá, toca a destapar isso e vamos ver o que há! O
coração de Nartallo batia forte e sem compasso. Encheu o peito de ar,
procurando acalmar as emoções. Era um homem simples, do povo, profundamente
devoto do apóstolo, a viver um momento mágico ao lado de gente influente, que
nele confiava para descobrir a mais sagrada relíquia do ocidente. Comovido,
desceu pelo buraco, entrou terra adentro, com um candeeiro de petróleo na mão.
Pousou-o junto ao túmulo, para lhe alumiar o sagrado labor. Com um martelo e um
escalpelo tirou dois tijolos laterais do sepulcro. Os ladrilhos caíram no chão.
Pegou no candeeiro e deu luz ao interior. Argggghhh…, gritou, recuando, como se
tivesse apanhado um murro no estômago. O que foi?!, interrogou Ferreiro de
imediato, na parte de cima. O pedreiro tossia e não conseguia articular as
palavras. Nartallo! Larramendi enfiava a cabeça na abertura da laje. O que se
passa, homem?! Um nervoso miudinho corroía os ventres dos clérigos». In Alberto
S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN
978-972-068-096-9.
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