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Rasgada no reinado de Afonso III e reformulada algumas décadas depois por Dinis
I, que nela concentrou o grosso do seu investimento imobiliário, a Rua Nova,
invulgarmente ampla e rectilínea, sobretudo no contexto de uma cidade onde a
marca islâmica seria então ainda vincadamente presente, foi, durante toda a
Idade Média, a milhor e mais prinçipall da dicta çidade, para
usarmos o testemunho de Afonso V. O seu calcetamento, acto então ainda muito
circunscrito e pouco comum, foi ordenado por João II que seguiu a obra com
particular interesse, não só mandando fazer uma planta pyntada em papell
de 6 metros de comprimento, a partir da qual ele e os seus colaboradores mais
próximos discutiam o andamento da obra, como também encomendando a pedra na
região do Porto, seguindo o modelo que João I usara na Rua Formosa, acréscimo
imenso de esforço e de custo só justificáveis pela excepcionalidade da rua no
panorama urbano de então
Hieronymus
Münzer, João Brandão de Buarcos ou Damião de Góis são apenas alguns dos que a
enalteceram por motivos diversos: pela largura ímpar, atingindo quase 9 metros;
por ser ornada de ambos os lados de altos edifícios, todos de três e quatro sobrados,
ou por nela se juntarem todos os dias, comerciantes de todas as partes e
povos do mundo. Era, de facto, o nervo comercial de Lisboa, nela se
concentrando lojas de panos e sedas de todas as sortes, tendas de especiarias
de todo o género, boticas ou livreiros. Nos sobrados de cima, continuando a
seguir João Brandão, viviam inúmeros mercadores, homens muito abastados e de
grossíssimas fazendas, dinheiro e trato. O elevado número de escravos, que
levou Baccio da Filicaia a caracterizar Lisboa como um jogo de xadrez,
tantos os brancos quantos os negros, as chamadas negras de canastra
que, transportando os despejos domésticos à cabeça, espantavam os visitantes,
ou a forma como os portugueses de bem trajavam, com longas capas negras que
lhes deixavam apenas os braços de fora, como relata Jan Taccoen em 1514, são
uma nota dominante nesta, como noutras representações das zonas centrais e
ribeirinhas da cidade de Lisboa
Todavia,
mais do que uma análise detalhada da obra ou do ambiente cosmopolita que evoca,
importa aqui referir como o ângulo representado, uma vista frontal do casario,
permite, pela primeira vez, observar em toda a sua especificidade a famosa Rua
Nova dos Mercadores. Os edifícios de quatro e cinco pisos, ou de três e quatro
sobrados para usar a terminologia da época, com lojas e sobrelojas na galeria
térrea formada por esteios de pedra e madeira, mais de cento e quarenta e nove
de acordo com contagem do século XVIII; o revestimento parcial das frontarias
com madeira, os chamados fromtaes de tavoado ou os ressaltos das
fachadas, soluções construtivas tipicamente medievais; a diferente altura dos
edifícios ou a tipologia das janelas, cerradas por portadas de madeira
basculantes, muitas delas dotadas de pequenas aberturas centrais, destinadas a
deixar passar alguma luz, são características que, em conjunto, descrevem uma
realidade concreta, documentam o espaço e o tornam reconhecível. Curiosamente,
todas essas características, sem excepção, marcam presença na tábua do Convento
de Cristo, realizada cerca de quarenta anos antes. O cotejo entre ambas as
pinturas permite-nos abandonar a ideia de Gregório Lopes ter representado uma
cidade anónima, identificando, pelo contrário, a representação da cidade habitada
pelo próprio pintor, recorde-se que residia em Lisboa, junto ao mosteiro de S. Domingos,
a escassas centenas de metros da Rua Nova dos Mercadores. Identificação que me
parece ter passado até agora despercebida mas que, verdadeiramente, só seria
possível a partir da descoberta da tela flamenga, ocorrida há cerca de cinco
anos atrás. Lisboa quinhentista, portanto. Essa cidade que, sobretudo entre o
Rossio e a recém renovada frente ribeirinha, com passagem obrigatória pelas
ruas Nova d’El Rei e Nova dos Mercadores corporizava, na década de 1530, um dos
principais entrepostos comerciais de toda a Europa, onde diariamente fundeavam
caravelas e carracas vindas de todas as partes do mundo conhecido Lisboa,
cabeça do Império, podia certamente repartir o espaço narrativo da tábua com
Roma, essa outra caput mundi. Síntese de dois espaços que,
simultaneamente, figuravam de forma particularmente legível o percurso da
famosa relíquia de S. Sebastião: de Roma a Lisboa». In Luísa Trindade, Uma outra
representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S.
Sebastião de Gregório Lopes, Revista Medievalista, Nº 20, JUL-DEZ, 2016, ISSN
1646-740X.
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