quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O Cemitério de Praga. Umberto Eco. «Ainda reflectindo sobre, afinal, que dia era, subi à minha casa. Pensei em tirar a barba e o bigode postiços, como faço quando estou sozinho, e entrei no quarto»

jdact e wikipedia

Quem sou? 24 de Março de 1897
«(…) Volta e meia meto na boca uma pastilha e faço-a passar de um lado a outro da língua, o que me permite falar mais devagar, e o ouvinte acompanha o movimento dos seus lábios e não fica muito atento àquilo que você diz. O problema é ter o aspecto de alguém dotado de uma inteligência menos que medíocre. Desci e circulei pela rue Sauton, tentando não me deter diante da cervejaria, de onde já de manhã cedo provinha o vozerio desgracioso de suas mulheres perdidas.
A place Maubert já não é o pátio dos milagres que ainda era quando aqui cheguei 35 anos atrás, formigante de comerciantes de tabaco reciclado, o grosso obtido dos resíduos de charutos e do fundo de cachimbos e o fino das primeiras guimbas de cigarros, o grosso a um franco e vinte cêntimos, o fino entre um franco e cinquenta e um franco e sessenta cêntimos a libra (embora aquela indústria não rendesse, e afinal não rende muito, pois nenhum daqueles industriosos recicladores, uma vez gasta uma parte consistente dos seus ganhos em alguma cantina, não sabe mais onde dormir à noite); de gigolôs que, depois de folgarem ao menos até às duas da tarde, passavam o resto do dia fumando, apoiados a uma parede como muitos aposentados de boa condição, entrando depois em acção como cães pastores na calada das trevas; de ladrões reduzidos a roubarem um ao outro porque nenhum burguês (excepto algum boa-vida vindo do interior) ousaria atravessar aquela praça, e eu seria uma presa fácil se não caminhasse com passo militar, girando minha bengala, e também os batedores de carteira do local me conheciam, alguns até me cumprimentavam chamando-me de capitão; pensavam que de algum modo eu pertencia ao seu submundo, e cão não come cão; e de prostitutas de graças murchas visto que, se ainda fossem atraentes, exerceriam nas brasseries à femmes, e portanto se ofereciam somente aos trapeiros, aos vigaristas e aos pestilentos fumantes de segunda mão, mas, ao verem um senhor vestido com propriedade, com uma cartola bem escovada, podiam ousar tocá-lo ou até segurá-lo por um braço, aproximando-se a ponto de fazê-lo sentir aquele terrível perfume de poucos soldos que se empastava com o suor delas, e essa seria uma experiência muito desagradável (eu não queria sonhar com elas à noite) e portanto, quando via alguma se avizinhando, agitava a bengala em círculo, como que para formar ao meu redor uma zona protegida e inacessível, e elas compreendiam na hora, porque estavam habituadas a ser comandadas e respeitavam uma bengala. E por fim circulavam naquela multidão os espiões da polícia, que naquele lugar recrutavam seus mouchards ou informantes, ou então captavam no ar informações preciosíssimas sobre velhacarias que estavam sendo conspiradas e das quais alguém falava a algum outro sussurrando em voz alta demais, pensando que no rumor geral sua voz se perderia. Eram, porém, reconhecíveis à primeira vista pelo aspecto exageradamente patibular. Nenhum verdadeiro bandido se assemelha a um bandido. Só eles. Hoje passam pela praça até os tramways, e você não se sente mais em casa, embora, se souber identificá-los, ainda encontre os indivíduos que podem lhe ser úteis, encostados em uma esquina, na soleira do Café Maitre Albert ou em uma das ruelas adjacentes. Mas, em suma, Paris não é mais como antes, desde quando em todo canto surgem à distância aqueles apontadores de lápis da torre Eiffel. Chega, não sou um sentimental, e existem outros lugares onde sempre posso pescar aquilo de que preciso. Ontem pela manhã, eu precisava da carne e do queijo, e a place Maubert serviria. Adquirido o queijo, passei em frente ao açougue costumeiro e vi que estava aberto. Como assim, abrindo numa terça-feira?, perguntei, entrando. Mas hoje é quarta-feira, capitão, respondeu o dono, rindo. Confuso, pedi desculpas; disse que ao envelhecer a gente perde a memória, ele afirmou que eu continuava um jovenzinho e que todos ficam atordoados quando acordam muito cedo, eu escolhi a carne e paguei sem sequer mencionar um desconto, o que é o único modo de se fazer respeitar pelos comerciantes. Ainda reflectindo sobre, afinal, que dia era, subi à minha casa. Pensei em tirar a barba e o bigode postiços, como faço quando estou sozinho, e entrei no quarto. E só então notei algo que parecia fora do lugar: de um cabideiro, ao lado da cómoda, pendia uma veste, um hábito indubitavelmente sacerdotal. Ao me aproximar, vi que no tampo da cómoda havia uma peruca de cor castanha, quase alourada. Já me perguntava a qual miserável eu dera hospitalidade nos dias precedentes quando me dei conta de que também estava mascarado, uma vez que o bigode e a barba que usava não eram meus». In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, 2010, tradução de Joana Angélica Melo, ePUBr, Biblioteca Digital Brasileira, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.

Cortesia de ERecord/JDACT