domingo, 16 de outubro de 2016

Domitila. Paulo Rezzutti. «… afinal, não haviam elas incitado os maridos durante a Guerra dos Emboabas? Do sul de Minas veio o ditado: quem casa com paulista nunca mais levanta a crista»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) As paulistas de classe mais elevada geralmente só eram vistas nas ruas acompanhadas pelo chefe da família e usualmente para fins religiosos, quando saíam trajadas com sarja de Málaga preta e a mantilha de caxemira debruada de renda que tudo escondia. As imagens representando as paulistas dessa época nos recordam as burcas usadas pelas mulheres em alguns países islâmicos. As mulheres mais pobres usavam roupas de chita e baeta e cobriam-se com xaile preto. A vestimenta mudava totalmente em dia de festa, quando elas apareciam com vestidos coloridos e decotados, cobertas de colares de ouro e com os cabelos enfeitados com flores. O respeito à Igreja, aos maridos, pais e irmãos estava longe de colocar a mulher paulista como ser indefeso e totalmente obediente. Durante anos, as mulheres de São Paulo acostumaram-se a tomar decisões e resolver a vida sem seus companheiros. Primeiro os homens partiam com as monções e as bandeiras, expedições que alargaram os limites brasileiros atrás de índios, ouro e pedras preciosas, depois houve a fase da corrida do ouro nas Minas Gerais. Com a vocação de São Paulo guardar as fronteiras do sul, enquanto os homens iam para as guerras, as mulheres viravam-se. Algumas eram tidas por bruxas, pois faziam o impossível para lidar com as necessidades básicas diárias. Delas dependiam muitas vezes o sustento dos filhos e a cura de enfermidades, com suas ervas e rezas. Mulher paulista era sinónimo de mulher brava e independente; afinal, não haviam elas incitado os maridos durante a Guerra dos Emboabas? Do sul de Minas veio o ditado: quem casa com paulista nunca mais levanta a crista. A religião não só marcava os limites, por intermédio de seus conventos, igrejas e cemitérios, mas também ditava o dia a dia da vila. Nos oratórios públicos, um deles nos quatro cantos, nome da antiga encruzilhada formada pela rua Direita e rua São Bento, era possível encontrar boa parte da população paulistana ajoelhada na rua às 18 horas, rezando por cerca de vinte e cinco minutos.
Religião e moral, apesar das tentativas de se aliar uma à outra, raramente andaram juntas, ainda mais na São Paulo daquela época. Alguns paulistas preferiam as igrejas cujo latinório era dito mais rapidamente para se verem livres da obrigação religiosa, ou ainda escolhiam aquela em que sabiam que o padre exagerava no vinho da missa, para hilaridade dos fiéis. O crescei e multiplicai era levado a sério pelos próprios sacerdotes, que tinham filhos. Ao se analisar o censo de 1798, é possível ver que estava longe de ser rara a família cuja chefe era uma mulher solteira e com mais de três filhos. Claro que ter dinheiro ajudava a mulher a ser livre e dona de seu destino, como o caso de Teresa Braseiro. Viúva diversas vezes, essa espanhola alta, loura e de olhos azuis, abastada proprietária das terras onde hoje fica o Largo do Paissandu, nas quais seus escravos plantavam café, enamorou-se do militar açoriano João Castro, noivou e teve dele uma filha, Maria Eufrásia Castro, a quem criou sozinha devido ao término do compromisso. De condição financeira inferior, João Castro Canto Melo, pai da futura marquesa de Santos, chegou a acumular diversas dívidas, inclusive de fretes. Casar em São Paulo era caro, como veremos.
João Castro tinha o apelido de Quebra-Vinténs, querem uns pela sua força física, pois seria capaz de dobrar moedas com os dedos, querem outros pela fama de desvirginar donzelas. Segundo a viajante inglesa Maria Graham, o pai de Domitila: …posto que português de boa família, mantinha o que se chama, tecnicamente, uma loja em São Paulo (…). Foi nessa venda que dom Pedro se hospedou quando fez sua excursão política às capitanias do sul. As quatro filhas solteiras do hospedeiro foram chamadas para entreter o Real visitante com música e dança. Alguém observou que a pérola da família, ou antes, da cidade, estava ausente e se chamava Madame Castro. Seu marido era oficial da milícia local. O pai foi polidamente solicitado a mandar buscar a pérola. Veio e foi julgada irresistível!
João Castro estava bem longe de ser um estalajadeiro que colocava suas filhas para dançar sobre as mesas para deleite do futuro imperador do Brasil. Da bisbilhotice recolhida por lady Graham, amiga íntima da imperatriz Leopoldina, a única verdade é que o pai de Domitila era um português de boa família. Nascido em Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, Açores, em 1740, podia não ser rico, porém descendia da antiga nobreza lusitana e espanhola. Entre seus antepassados contavam-se vice-reis da Índia, altos funcionários administrativos e nobres cavaleiros». In Paulo M. Rezzutti, Domitila, 2012, Geração Editorial, São Paulo, 2013, ISBN 978-853-940-089-4.

Cortesia de GeraçãoE/JDACT