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4 de
Julho de 2005. Pic de Soularac. Montes Sabarthès. SW da França
«(…)
Alice conhece os perigos de tirar conclusões apressadas ou de ser seduzida por
primeiras impressões, mas não consegue evitar pensar no dono daquela fivela,
morto há tanto tempo, e que pode ter andado por aqueles mesmos caminhos. Um
desconhecido cuja história ela ainda precisa descobrir. A conexão é tão forte e
Alice está tão entretida que não percebe a pedra se mexendo em sua base. Então
alguma coisa, algum sexto sentido, a faz olhar para cima. Por uma fração de
segundo, o mundo parece estar suspenso, fora do espaço, fora do tempo. Ela fica
inteiramente hipnotizada pelo pedaço de rocha antiquíssimo que balança, se
inclina, e então, graciosamente, começa a cair em sua direção. No último
instante, a luz muda. O feitiço se rompe. Alice se joga para longe, meio se
arrastando, meio escorregando de lado, bem a tempo de evitar ser esmagada. A
pedra bate no chão com um baque surdo, levantando uma nuvem de pó marrom claro,
depois sai rolando, como em câmera lenta, até parar mais abaixo na montanha. Alice
se agarra desesperadamente aos arbustos e à vegetação rasteira para evitar
escorregar mais. Por um instante, fica estendida no chão, tonta e desorientada.
Quando percebe que só não foi esmagada por um triz, seu corpo congela. Foi por
pouco, pensa. Respira fundo. Espera o mundo parar de girar. Aos poucos, o latejar
em sua cabeça diminui. O enjoo passa e tudo começa a voltar ao normal, o
suficiente para ela poder se sentar e avaliar a situação. Seus joelhos estão
esfolados e riscados de sangue, e ela bateu com o pulso ao cair de mau jeito,
ainda segurando a fivela na mão para protegê-la, mas no geral escapou ilesa a
não ser por alguns cortes e hematomas. Não me machuquei. Levanta-se e espana a
poeira do corpo, sentindo-se uma completa idiota. Não consegue acreditar que
cometeu um erro tão elementar quanto não escorar a pedra. Então Alice lança um
olhar para a sede da escavação lá em baixo. Fica espantada, e aliviada, ao
constatar que ninguém no acampamento parecer ter visto nem ouvido nada. Levanta
a mão e está prestes a gritar para atrair a atenção de alguém quando percebe
uma estreita abertura visível no flanco da montanha onde antes estava a pedra. Como
uma porta escavada na rocha. Dizem que essas montanhas são coalhadas de
passagens e cavernas escondidas, de modo que ela não fica surpresa. Porém,
pensa Alice, de alguma forma ela sabia que a porta estava ali, embora não seja
possível vê-la do exterior. Ela sabia. Na verdade, eu adivinhei, diz a si
mesma. Ela hesita. Alice sabe que deveria chamar alguém para entrar com ela. É
estúpido, e talvez até perigoso, entrar sozinha sem nenhum tipo de apoio. Ela
sabe todas as coisas que podem dar errado. Mas, de qualquer modo, não deveria
estar trabalhando ali em cima sozinha. Shelagh não sabe. E, além disso, algo a
está atraindo lá para dentro. Parece pessoal. Aquela descoberta é sua. Alice
diz a si mesma que não faz sentido incomodar os outros, aumentar suas
expectativas sem motivo. Se houver alguma coisa que valha a pena investigar,
então ela contará a alguém. Não vai fazer nada. Quer apenas olhar. Vai levar só
um minuto. Ela torna a subir. Há uma profunda depressão no solo na entrada da
caverna, onde antes ficava a pedra. A terra húmida fervilha com a frenética actividade
de minhocas e besouros subitamente expostos à luz e ao calor depois de tanto
tempo. Seu boné está no chão no mesmo lugar onde caiu. Sua colher de pedreiro
também está lá, exactamente onde ela a deixou. Alice espia para dentro da
escuridão. A abertura não tem mais de um metro e meio de altura por cerca de um
metro de largura, e suas bordas são irregulares e ásperas. Parece uma abertura
natural, não algo feito pelo homem, mas quando ela passa os dedos pela rocha,
para cima e para baixo, encontra trechos curiosamente lisos nos pontos onde a
pedra repousava. Lentamente, seus olhos se acostumam à penumbra. O preto
aveludado cede lugar a um cinza escuro, e ela vê que está diante de um túnel
comprido e estreito. Sente os cabelos finos se eriçarem na nuca, como a
avisá-la de que na escuridão há algo à espreita que seria melhor deixar em paz.
Mas é só uma crença infantil, e ela não se permite pensar nisso. Alice não
acredita em fantasmas nem em premonições. Apertando a fivela na mão com força,
como um talismã, ela respira fundo e dá um passo para dentro da passagem. No
mesmo instante, o cheiro de um ar subterrâneo há muito escondido a envolve,
enchendo sua boca, sua garganta, seus pulmões. O ambiente é fresco e húmido,
sem os gases secos, venenosos de uma caverna lacrada com os quais lhe avisaram
para tomar cuidado, então ela conclui que deve existir alguma fonte de ar puro.
Porém, para garantir, vasculha os bolsos dos shorts até encontrar seu isqueiro.
Acende-o e ergue-o em direcção ao espaço escuro, confirmando que há oxigénio. A
chama é sacudida por uma corrente de ar, mas não se apaga». In
Kate Mosse, O Labirinto Perdido, Labyrinth, 2005, Publicações
dom Quixote, 2006, ISBN 978-972-202-969-8.
Cortesia de
PdomQuixote/JDACT