jdact
Conferências.
Decifração
«(…)
A alegoria está no trâmite final que identifica a minha carne com a minha
palavra. A interpretação alegórica é pois um percurso que vai da análise da
materialidade do discurso, passa pela sua integração no contexto, e remata com
a extrapolação fundamentada nos dois níveis anteriores, Sobretudo no contexto,
como acontece neste caso em que Cristo, um pouco antes, declarara que a sua
carne era pão celeste, forçando de todas as maneiras, per allegoriam, os
seus ouvintes a recordarem-se dos seus antepassados que preferiram o pão e a
carne dos Egípcios ao chamamento divino. E foi por isso que disse: A carne de nada
aproveita. Com este remate voltamos ao sentido literal do início, mas agora
enriquecido de outros sentidos que lhe são conferidos pelo contexto. Digamos,
por conclusão, que em princípio só deveria haver interpretação alegórica quando
o texto contivesse em si uma linguagem já de si alegórica ou alegorizante, como
no caso acima analisado; deveria, pois, imperar o princípio segundo o qual o
nível da decifração deve corresponder ao nível da cifração, e deve haver uma
corrente contínua entre sentido literal, contexto, e significação alegórica.
Estes são os princípios que estão presentes em muitos escritores medievais, não
apenas como exegetas do texto, mas também como fazedores dos seus próprios
textos.
Significado
dos nomes próprios
Um
dos fundamentos da interpretação alegórica foi desde tempos imemoriais a
decifração dos nomes próprios a partir do seu significado como substantivo
comum. O hebraico é uma daquelas línguas em que o nome próprio, em muitos
casos, mantém viva e transparente a motivação do significado, no sentido que
lhe foi dado por Stephen Ulmann. De facto Bethlehem é um nome próprio composto
de dois substantivos comuns, dos quais Beth significa casa e lehem pão. É quase
um processo natural que alguém comente, a propósito do nascimento de Cristo em Bethlehem,
que ele aí nasceu porque é o pão da vida, como um dia afirmou de si próprio segundo
o Evangelho de S. João; ou, como fez S. Jerónimo, diga: salve Bethlehem, casa
do pão, onde nasceu o pão que desceu do céu. S. Jerónimo usa abundantemente
deste processo alegórico na escrita das suas cartas, de tal modo que um editor
moderno terá necessidade de lhes acrescentar umas notas para que o texto seja
inteligível. Assim procedeu, por exemplo, numa carta a Algásia, onde relata que
o seu discípulo Apodémio, fazendo jus ao significado do seu nome, fez uma longa
viagem para o visitar. Esta alegorização tem como base a etimologia de
Apodemius, que significa aquele que viaja fora do seu país. Umas linhas abaixo,
continuando no mesmo estilo de discurso, Jerónimo escreve que o mesmo Apodémio,
deixando Roma para trás, se dirigiu a Bethlehem, para encontrar nela o pão
celeste, numa alusão clara a dois factos: um de carácter linguístico, que
consiste em descodificar o nome próprio atribuindo-lhe o significado dos
elementos que o constituem: Bethlehem = casa do pão; o outro facto é de
carácter literário, pois subentende uma remissão implícita, mas apreensível no
ambiente da cultura cristã do seu tempo, uma remissão, digo, para a afirmação
de Cristo: eu sou o pão que desceu do céu. Avançando um pouco mais, diremos que
a alegorização se constrói e se impõe pela associação destes dois factos, o
linguístico e o literário. Sem um deles, o outro também não era suficiente para
a construção do ambiente alegórico do discurso. Mas S. Jerónimo não se fica por
aqui, e completa o seu raciocínio: dirigiu-se para Bethlehem para encontrar
nela o pão celeste e, restaurado, arrotar no Senhor. Este estranho arrotar,
quase de mau gosto, é simplesmente mais uma referência literária, que se
encontra no salmo 44, e que aliás é citado na forma por ele consignada na
Vulgata: eructavit cor meum verbum bonum; o que traduzido segundo a letra
da versão latina daria: o meu coração arrotou uma palavra boa. É claro
que a tradução latina é demasiado literal, já que no hebraico o verbo rahasch,
que está subjacente a eructare, significa propriamente deitar cá para fora,
exalar, exprimir. Daí que os tradutores mais recentes tenham traduzido por o
meu coração transborda num belo poema, ou coisa parecida. Jerónimo, porém,
alegoriza com o sentido literal de eructavit porque só assim podia associar os dois
factos em que fundamenta a sua alegorização, isto é, a casa do pão (Bethlehem),
o pão do céu, (referência ao Evangelho de S. João) e a saciedade que provoca em
quem dele se alimenta, simbolizada no arroto do coração. Queria acentuar, mais
uma vez, uma das leis da alegoria: a conservação do significado literal das
palavras». In Arnaldo Espírito Santo, Da Decifração em Textos Medievais, IV Colóquio
da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa
2002, Edições Colibri, Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.
Cortesia de
Colibri/JDACT