domingo, 23 de outubro de 2016

Decifração em Textos Medievais. Arnaldo Espírito Santo. «… eructavit cor meum verbum bonum; o que traduzido segundo a letra da versão latina daria: o meu coração arrotou uma palavra boa».

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Conferências. Decifração
«(…) A alegoria está no trâmite final que identifica a minha carne com a minha palavra. A interpretação alegórica é pois um percurso que vai da análise da materialidade do discurso, passa pela sua integração no contexto, e remata com a extrapolação fundamentada nos dois níveis anteriores, Sobretudo no contexto, como acontece neste caso em que Cristo, um pouco antes, declarara que a sua carne era pão celeste, forçando de todas as maneiras, per allegoriam, os seus ouvintes a recordarem-se dos seus antepassados que preferiram o pão e a carne dos Egípcios ao chamamento divino. E foi por isso que disse: A carne de nada aproveita. Com este remate voltamos ao sentido literal do início, mas agora enriquecido de outros sentidos que lhe são conferidos pelo contexto. Digamos, por conclusão, que em princípio só deveria haver interpretação alegórica quando o texto contivesse em si uma linguagem já de si alegórica ou alegorizante, como no caso acima analisado; deveria, pois, imperar o princípio segundo o qual o nível da decifração deve corresponder ao nível da cifração, e deve haver uma corrente contínua entre sentido literal, contexto, e significação alegórica. Estes são os princípios que estão presentes em muitos escritores medievais, não apenas como exegetas do texto, mas também como fazedores dos seus próprios textos. 
Significado dos nomes próprios
Um dos fundamentos da interpretação alegórica foi desde tempos imemoriais a decifração dos nomes próprios a partir do seu significado como substantivo comum. O hebraico é uma daquelas línguas em que o nome próprio, em muitos casos, mantém viva e transparente a motivação do significado, no sentido que lhe foi dado por Stephen Ulmann. De facto Bethlehem é um nome próprio composto de dois substantivos comuns, dos quais Beth significa casa e lehem pão. É quase um processo natural que alguém comente, a propósito do nascimento de Cristo em Bethlehem, que ele aí nasceu porque é o pão da vida, como um dia afirmou de si próprio segundo o Evangelho de S. João; ou, como fez S. Jerónimo, diga: salve Bethlehem, casa do pão, onde nasceu o pão que desceu do céu. S. Jerónimo usa abundantemente deste processo alegórico na escrita das suas cartas, de tal modo que um editor moderno terá necessidade de lhes acrescentar umas notas para que o texto seja inteligível. Assim procedeu, por exemplo, numa carta a Algásia, onde relata que o seu discípulo Apodémio, fazendo jus ao significado do seu nome, fez uma longa viagem para o visitar. Esta alegorização tem como base a etimologia de Apodemius, que significa aquele que viaja fora do seu país. Umas linhas abaixo, continuando no mesmo estilo de discurso, Jerónimo escreve que o mesmo Apodémio, deixando Roma para trás, se dirigiu a Bethlehem, para encontrar nela o pão celeste, numa alusão clara a dois factos: um de carácter linguístico, que consiste em descodificar o nome próprio atribuindo-lhe o significado dos elementos que o constituem: Bethlehem = casa do pão; o outro facto é de carácter literário, pois subentende uma remissão implícita, mas apreensível no ambiente da cultura cristã do seu tempo, uma remissão, digo, para a afirmação de Cristo: eu sou o pão que desceu do céu. Avançando um pouco mais, diremos que a alegorização se constrói e se impõe pela associação destes dois factos, o linguístico e o literário. Sem um deles, o outro também não era suficiente para a construção do ambiente alegórico do discurso. Mas S. Jerónimo não se fica por aqui, e completa o seu raciocínio: dirigiu-se para Bethlehem para encontrar nela o pão celeste e, restaurado, arrotar no Senhor. Este estranho arrotar, quase de mau gosto, é simplesmente mais uma referência literária, que se encontra no salmo 44, e que aliás é citado na forma por ele consignada na Vulgata: eructavit cor meum verbum bonum; o que traduzido segundo a letra da versão latina daria: o meu coração arrotou uma palavra boa. É claro que a tradução latina é demasiado literal, já que no hebraico o verbo rahasch, que está subjacente a eructare, significa propriamente deitar cá para fora, exalar, exprimir. Daí que os tradutores mais recentes tenham traduzido por o meu coração transborda num belo poema, ou coisa parecida. Jerónimo, porém, alegoriza com o sentido literal de eructavit porque só assim podia associar os dois factos em que fundamenta a sua alegorização, isto é, a casa do pão (Bethlehem), o pão do céu, (referência ao Evangelho de S. João) e a saciedade que provoca em quem dele se alimenta, simbolizada no arroto do coração. Queria acentuar, mais uma vez, uma das leis da alegoria: a conservação do significado literal das palavras». In Arnaldo Espírito Santo, Da Decifração em Textos Medievais, IV Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002, Edições Colibri, Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.

Cortesia de Colibri/JDACT