domingo, 16 de outubro de 2016

Erotismo Queirosiano. Ana Luísa Vilela. «Os folhetins d’As Farpas (1871-72), que Eça depois reuniu em Uma Campanha Alegre, fornecem uma explícita síntese daquilo que podemos considerar a fase seguinte da ideologia erótica queirosiana»


jdact e wikipedia

A Construção Ideológica
«(…) Finalmente, a representação queirosiana do erotismo integra ainda, neste período, associados a esta componente lírica e intimamente aliados a uma latente misoginia, dois outros campos de imagens: a representação idealizada da mulher e a apologia do amor natural. A sobrecarga simbólica da figura feminina acentua-se com a introdução, nos textos deste período, da fantasia erótica, inspirada quer pela mitologia germânica quer pela etnografia do Sul. Todo um sincretismo de figuras encantatórias e clandestinas incorpora subitamente a evocação saudosa de uma noite alentejana de S. João. São seres luminosos e etéreos, de beijos vampíricos, provocam encantamentos, delícias e mortes. Fulcro da tematização de um universo decadente, o erotismo, de cuja essencial desordem são sinais a prostituição, os audaciosos costumes femininos, a literatura da paixão, a ociosidade, a voluptuosidade aérea e luminosa, invoca insidiosamente a catástrofe. Uma catástrofe perversamente desejada como um beijo mortífero. Entre a abjecção da obscenidade e a sedução da fantasia, estrutura-se afinal, nestes textos do primeiro Eça, um discurso ideológico-erótico cujas raízes, profundamente afectivas, denunciam uma ambiguidade essencial: a ambiguidade constitutiva da figura feminina. A mulher queirosiana de 1867 é um ser irresistível e repulsivo: absolutamente romântico. O incessante processo que Eça lhe moverá será a resposta a uma intuição básica, a de que o desejo fluidifica e desvanece as fronteiras entre a realidade e a fantasia.
Os folhetins d’As Farpas (1871-72), que Eça depois reuniu em Uma Campanha Alegre, fornecem uma explícita síntese daquilo que podemos considerar a fase seguinte da ideologia erótica queirosiana, precisando e aprofundando noções que já vinham de 1867, e sobretudo reformulando-as no interior do paradigma que constituiu sempre para Eça a referência axial mais segura, a moral proudhoniana. As características fundamentais do erotismo positivista queirosiano, o discurso que, repitamo-lo, articulou a sua reflexão de forma mais estruturada e mais consistentemente formulada em termos ideológicos, cifram-se no desenvolvimento de duas noções nucleares que já conhecemos: a misoginia ambivalente e a angústia da decadência, que terão encontrado em Proudhon um eco tranquilizante, uma caução filosófica e um discurso organizado e convincente. Por um lado, os temas eróticos continuam a inscrever-se na ampla figuração decadente, servidos por um discurso que genericamente designámos por discurso da perda. Este discurso, agora, adquire uma espécie de consciência crítica e articula-se em ideologia: trata-se de responder à angústia pela indagação racional das causas objectivas da decadência, e, quanto possível, de lhes apontar soluções. Por outro lado, consideremos que uma das pretensões do Naturalismo é a de libertar o homem da mulher e do sentimento amoroso. O próprio eros positivista se enraíza assim na noção da perda. A supressão da dimensão transcendente da figura feminina, a tradução da paixão pela fisiologia e a redução do eros ao instinto, acompanham a recusa da poética romântica e definem a mulher pela sua exclusiva materialidade, equivalendo à sua proscrição.
No discurso assumidamente pedagógico d’As Farpas, esta tendência manifesta-se pela abordagem de quatro temas correlativos: a educação feminina, o problema do adultério, a concupiscência do discurso eclesiástico, a influência nefasta do sentimentalismo romântico. A languidez, a moleza, a preguiça, a debilidade, a fraqueza, a fadiga, são traços da imagem da menina lisboeta. Esta é a imagem dissolvente da feminilidade invertebrada, oposta precisamente às estruturas típicas do imaginário da virilidade, vigor, dureza, verticalidade, racionalidade, soberania. Uma virilidade física, justamente, com os seus traços solares de pureza e energia, é o que caracteriza a figura contrastiva da distante jovem anglo-saxónica: veja-se o andar de uma inglesa, elástico, firme, direito, sério: sente-se ali a saúde, a decisão, a coragem, a personalidade bem afirmada. Este regime figurativo dominado pela antítese, pela exclusão e pela disjunção, consignada no aforismo de Proudhon sobre a mulher: courtisane ou ménagère, constitui o núcleo duro da imaginação erótica queirosiana. De facto, assentando este regime discriminativo numa perfeita sistematização simbólica, em que os planos físico e moral se correspondem, resulta clara a construção de uma tendência racionalizante e positiva, de reforço e apologia da identidade viril, uma tendência que unirá Eça a, por exemplo, Ramalho Ortigão». In Ana Luísa Vilela, Erotismo Queirosiano, Universidade de Évora, ContraNatura, Wikipedia.

Cortesia de ContraNatura/Wikipedia/JDACT