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A
Construção Ideológica
«(…)
Finalmente, a representação queirosiana do erotismo integra ainda, neste
período, associados a esta componente lírica e intimamente aliados a uma
latente misoginia, dois outros campos de imagens: a representação idealizada da
mulher e a apologia do amor natural. A sobrecarga simbólica da figura feminina
acentua-se com a introdução, nos textos deste período, da fantasia erótica,
inspirada quer pela mitologia germânica quer pela etnografia do Sul. Todo um
sincretismo de figuras encantatórias e clandestinas incorpora subitamente a
evocação saudosa de uma noite alentejana de S. João. São seres luminosos e etéreos,
de beijos vampíricos, provocam encantamentos, delícias e mortes. Fulcro da
tematização de um universo decadente, o erotismo, de cuja essencial desordem
são sinais a prostituição, os audaciosos costumes femininos, a literatura da
paixão, a ociosidade, a voluptuosidade aérea e luminosa, invoca insidiosamente
a catástrofe. Uma catástrofe perversamente desejada como um beijo mortífero. Entre
a abjecção da obscenidade e a sedução da fantasia, estrutura-se afinal, nestes
textos do primeiro Eça, um discurso ideológico-erótico cujas raízes,
profundamente afectivas, denunciam uma ambiguidade essencial: a ambiguidade
constitutiva da figura feminina. A mulher queirosiana de 1867 é um ser
irresistível e repulsivo: absolutamente romântico. O incessante processo que
Eça lhe moverá será a resposta a uma intuição básica, a de que o desejo
fluidifica e desvanece as fronteiras entre a realidade e a fantasia.
Os
folhetins d’As Farpas (1871-72), que Eça depois reuniu em Uma Campanha Alegre,
fornecem uma explícita síntese daquilo que podemos considerar a fase seguinte
da ideologia erótica queirosiana, precisando e aprofundando noções que já
vinham de 1867, e sobretudo reformulando-as no interior do paradigma que
constituiu sempre para Eça a referência axial mais segura, a moral
proudhoniana. As características fundamentais do erotismo positivista
queirosiano, o discurso que, repitamo-lo, articulou a sua reflexão de forma
mais estruturada e mais consistentemente formulada em termos ideológicos,
cifram-se no desenvolvimento de duas noções nucleares que já conhecemos: a
misoginia ambivalente e a angústia da decadência, que terão encontrado em
Proudhon um eco tranquilizante, uma caução filosófica e um discurso organizado
e convincente. Por um lado, os temas eróticos continuam a inscrever-se na ampla
figuração decadente, servidos por um discurso que genericamente designámos por
discurso da perda. Este discurso, agora, adquire uma espécie de consciência
crítica e articula-se em ideologia: trata-se de responder à angústia pela
indagação racional das causas objectivas da decadência, e, quanto possível, de
lhes apontar soluções. Por outro lado, consideremos que uma das pretensões do
Naturalismo é a de libertar o homem da mulher e do sentimento amoroso. O
próprio eros positivista se enraíza assim na noção da perda. A supressão da
dimensão transcendente da figura feminina, a tradução da paixão pela fisiologia
e a redução do eros ao instinto, acompanham a recusa da poética romântica e
definem a mulher pela sua exclusiva materialidade, equivalendo à sua
proscrição.
No
discurso assumidamente pedagógico d’As Farpas, esta tendência manifesta-se pela
abordagem de quatro temas correlativos: a educação feminina, o problema do
adultério, a concupiscência do discurso eclesiástico, a influência nefasta do
sentimentalismo romântico. A languidez, a moleza, a preguiça, a debilidade, a
fraqueza, a fadiga, são traços da imagem da menina lisboeta. Esta é a imagem dissolvente
da feminilidade invertebrada, oposta precisamente às estruturas típicas do
imaginário da virilidade, vigor, dureza, verticalidade, racionalidade,
soberania. Uma virilidade física, justamente, com os seus traços solares de
pureza e energia, é o que caracteriza a figura contrastiva da distante jovem
anglo-saxónica: veja-se o andar de uma inglesa, elástico, firme, direito,
sério: sente-se ali a saúde, a decisão, a coragem, a personalidade bem afirmada.
Este regime figurativo dominado pela antítese, pela exclusão e pela disjunção,
consignada no aforismo de Proudhon sobre a mulher: courtisane ou ménagère,
constitui o núcleo duro da imaginação erótica queirosiana. De facto, assentando
este regime discriminativo numa perfeita sistematização simbólica, em que os
planos físico e moral se correspondem, resulta clara a construção de uma
tendência racionalizante e positiva, de reforço e apologia da identidade viril,
uma tendência que unirá Eça a, por exemplo, Ramalho Ortigão». In
Ana Luísa Vilela, Erotismo Queirosiano, Universidade de Évora, ContraNatura,
Wikipedia.
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