domingo, 30 de outubro de 2016

A Musa de Camões. Maria Helena Ventura. «A princesa sempre noiva vai partir para muito mais longe que a saudade, para um lugar a que ninguém se atreve a disputar ninguém»

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O Outono da Saudade
«(…) Serei capaz de reconstituir a cena toda? Por Sua Senhoria, agora morta, talvez consiga. Ela deixara-me ir à Ribeira acompanhar um dos escanções emprestado por Santa Clara. Na verdade eu andava de pé atrás com uns ditos, queria mais apurar se tinham fundamento do que fazer companhia a um criado. Enquanto ele tratava da sua incumbência eu vagueava pelas salas públicas, depois mais perto das privadas, quando ouvi meias palavras, uma conversa em voz baixa. Escondi-me rente aos móveis, sob as mesas, entre reposteiros, até ficar mais perto da reunião. Sua Alteza e seus conselheiros falavam com um embaixador de Espanha, apontando lugares num mapa sobre a grossa mesa. E nomeavam Sua Senhoria...Estavam nervosos..., ousavam ir longe de mais para a varrer das preocupações da coroa... Tanto bastou para regressar a Santa Clara mais inquieto, mais alerta do que sempre, e esperar onde era preciso. No meio do temor, revestido de uma ínfima esperança de estar enganado, foi alta sorte ninguém sair ferido. Só na alma a Senhora Infanta sofreu a violência da revelação. Até hoje não sei se valeu a pena tê-la salvo de um fim prematuro, já que morrer seria o que lhe destinavam. Manteve-se desde então com a cabeça fora de água, num mar ainda mais tempestuoso pela consciência do perigo, e do mesmo modo ignoro se dessa vida retirou sobejo consolo. Pouco importa, agora que está a salvo das hipocrisias do mundo e dele só vai merecer a última e mais sentida homenagem do afecto anónimo. A princesa sempre noiva vai partir para muito mais longe que a saudade, para um lugar a que ninguém se atreve a disputar ninguém.
Começo a ouvir as primeiras manifestações de carinho dos súbditos humildes das redondezas, um clamor de vozes fora dos muros do paço. São elas que me puxam dos labirintos do tempo e me chamam às janelas fechadas, já protegidas por reposteiros negros. As folhas que enchiam os parapeitos, ainda ontem, reproduzem-se agora em tapetes densos debaixo das árvores, caem em continuada tristeza. Ao ruído de fora responde o palácio com profundo silêncio, como se ninguém mais o habitasse. Daqui a pouco hão de levar o corpo para a igreja, o cortejo a reclamar o carpir habitual, tão contra os desejos da Senhora Infanta que pedia que não chorassem. Vou-me arranjar. Nada mais me é consentido neste momento em que representantes da corte e familiares, tão afastados em vida, reclamam para si o privilégio de estar mais perto.
Vestido com o rigor que as poucas roupas me permitem, cruzo-me com as lágrimas de gente anónima à entrada do convento, da igreja repleta. Regateiras, mulheres do pote, sapateiros, soldadores, outros oficiais mecânicos, todo o luto da cidade e do reino estão ali representados. Pouco podem fazer, mas não será pouco deixarem seus ofícios, humildemente à espera da ordem para desfilar diante do corpo, uma humildade que em vez de acusar subserviência, como querem os nobres fazer crer, antes vinca o direito de lhe prestarem, tal como os outros, a última homenagem. São gente que ninguém conhece, de quem toda a gente precisa, gentes invisíveis de uma engrenagem sem a qual o reino ficaria parado. Choram as mesmas lágrimas que choram aias, criados, damas. Algumas casadas virão de longe com os esposos, chegarão mais tarde, conforme informaram o paço.
Vou até quase ao altar, não sem invocar um pouco de arrogância, coisa que nunca tive. Nobres europeus em missão no reino, gente próxima de El Rei Sebastião I, cavaleiros, cortesãos, repartem entre si o espaço disponível. Ali está Sua Senhoria, a infanta, que não queria ser chamada por nós de Alteza Real. Assim tranquila, com o pequeno terço de ouro e pérolas nas mãos postas, parece ainda mais bela, qual Fénix num ninho de flores brancas. É como se esperasse o mágico raio de sol filtrado pelos vitrais para deixar incendiar o corpo e depois, emergindo das cinzas, de novo com um sorriso sereno repetisse, em deleitoso sonho, as palavras do poeta pois tive dormindo o que acordado ter quisera... Há flores da época e espécies raras à volta do seu vestido de veludo, íntimos objectos minúsculos, delicadas redes que costumava usar no cabelo, um camafeu que lhe deixara sua mãe e venerava». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT