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O
Outono da Saudade
«(…)
Serei capaz de reconstituir a cena toda? Por Sua Senhoria, agora morta, talvez
consiga. Ela deixara-me ir à Ribeira acompanhar um dos escanções emprestado por
Santa Clara. Na verdade eu andava de pé atrás com uns ditos, queria mais apurar
se tinham fundamento do que fazer companhia a um criado. Enquanto ele tratava
da sua incumbência eu vagueava pelas salas públicas, depois mais perto das privadas,
quando ouvi meias palavras, uma conversa em voz baixa. Escondi-me rente aos móveis,
sob as mesas, entre reposteiros, até ficar mais perto da reunião. Sua Alteza e seus
conselheiros falavam com um embaixador de Espanha, apontando lugares num mapa
sobre a grossa mesa. E nomeavam Sua Senhoria...Estavam nervosos..., ousavam ir longe
de mais para a varrer das preocupações da coroa... Tanto bastou para regressar
a Santa Clara mais inquieto, mais alerta do que sempre, e esperar onde era preciso.
No meio do temor, revestido de uma ínfima esperança de estar enganado, foi alta
sorte ninguém sair ferido. Só na alma a Senhora Infanta sofreu a violência da
revelação. Até hoje não sei se valeu a pena tê-la salvo de um fim prematuro, já
que morrer seria o que lhe destinavam. Manteve-se desde então com a cabeça fora
de água, num mar ainda mais tempestuoso pela consciência do perigo, e do mesmo modo
ignoro se dessa vida retirou sobejo consolo. Pouco importa, agora que está a
salvo das hipocrisias do mundo e dele só vai merecer a última e mais sentida
homenagem do afecto anónimo. A princesa sempre noiva vai partir para muito mais
longe que a saudade, para um lugar a que ninguém se atreve a disputar ninguém.
Começo
a ouvir as primeiras manifestações de carinho dos súbditos humildes das
redondezas, um clamor de vozes fora dos muros do paço. São elas que me puxam dos
labirintos do tempo e me chamam às janelas fechadas, já protegidas por reposteiros
negros. As folhas que enchiam os parapeitos, ainda ontem, reproduzem-se agora em
tapetes densos debaixo das árvores, caem em continuada tristeza. Ao ruído de fora
responde o palácio com profundo silêncio, como se ninguém mais o habitasse. Daqui
a pouco hão de levar o corpo para a igreja, o cortejo a reclamar o carpir habitual,
tão contra os desejos da Senhora Infanta que pedia que não chorassem. Vou-me arranjar.
Nada mais me é consentido neste momento em que representantes da corte e familiares,
tão afastados em vida, reclamam para si o privilégio de estar mais perto.
Vestido
com o rigor que as poucas roupas me permitem, cruzo-me com as lágrimas de gente
anónima à entrada do convento, da igreja repleta. Regateiras, mulheres do pote,
sapateiros, soldadores, outros oficiais mecânicos, todo o luto da cidade e do
reino estão ali representados. Pouco podem fazer, mas não será pouco deixarem seus
ofícios, humildemente à espera da ordem para desfilar diante do corpo, uma humildade
que em vez de acusar subserviência, como querem os nobres fazer crer, antes vinca
o direito de lhe prestarem, tal como os outros, a última homenagem. São gente
que ninguém conhece, de quem toda a gente precisa, gentes invisíveis de uma engrenagem
sem a qual o reino ficaria parado. Choram as mesmas lágrimas que choram aias, criados,
damas. Algumas casadas virão de longe com os esposos, chegarão mais tarde, conforme
informaram o paço.
Vou até
quase ao altar, não sem invocar um pouco de arrogância, coisa que nunca tive.
Nobres europeus em missão no reino, gente próxima de El Rei Sebastião I, cavaleiros,
cortesãos, repartem entre si o espaço disponível. Ali está Sua Senhoria, a infanta,
que não queria ser chamada por nós de Alteza Real. Assim tranquila, com o
pequeno terço de ouro e pérolas nas mãos postas, parece ainda mais bela, qual Fénix
num ninho de flores brancas. É como se esperasse o mágico raio de sol filtrado pelos
vitrais para deixar incendiar o corpo e depois, emergindo das cinzas, de novo com
um sorriso sereno repetisse, em deleitoso sonho, as palavras do poeta pois tive dormindo o que acordado ter
quisera... Há flores da época e espécies raras à volta do seu vestido de veludo,
íntimos objectos minúsculos, delicadas redes que costumava usar no cabelo, um camafeu
que lhe deixara sua mãe e venerava». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões,
Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.
Cortesia de
SdeEmergência/JDACT