O meu coração é como um espelho
- está nele o mundo inteiro
reflectido.
Escrevo tal como vejo,
e parecerá acaso raro,
e mesmo louco,
pois penso em coisas bem estranhamente diversas.
Yoshida Kenko, 1283-1350
«Há tempos, cruzaram-se os meus caminhos com os de Lisa. Dotada de uma
grande sensibilidade, é através da sua pintura "natif" que ela nos
revela o seu extremo gosto pelo belo, por tudo quanto é puro e simples. E é com
essa sua sensibilidade e esse seu gosto que eu me identifico. Tal como um poema
haiku,
a sua arte não tem fronteiras. Leio e releio as suas cartas com crescente
admiração. Deslumbrada pela magia das suas palavras e pela fragrância das suas
flores, aceitei colaborar neste livro.
Lisa Flores é uma escritora de linguagem poética e de miragens
que nos mostra a Natureza na sua forma mais singular. Enquanto poetisa, é um
ser receptivo ao permanente renascimento do mundo. Nas suas Cartas a Ninguém, Lisa vê o mundo com novos
olhos, como se o contemplasse pela primeira vez, e toca o eterno. Revela-nos
emoções fortes e simples, tanto do universo exterior como do universo mais
íntimo da sua alma. Esta pintora-poetisa vive no coração da saudade, entregue
aos anseios do seu Eu mais profundo.
Na sua caminhada poética, desvenda-nos, de forma renovada, a riqueza de
pequenas maravilhas que se escondem numa simples pedra, numa árvore, numa
nuvem, nas ondas do mar, no chilrear dos pássaros, na sombra dos malmequeres
silvestres, verdadeiros paraísos onde o homem comum, esquecido do real valor da
origem, só vê o valor representativo do interesse.
As flores são as mais bonitas
palavras e hieróglifos da Natureza.
Assim ela se insinua em nós
porque nos tem amor.
Coethe, 1749-1832
No Japão, as artes foram sempre entendidas como um caminho, Do,
que abraça toda a espiritualidade de uma cultura. É um caminho para a
perfeição, que, através da beleza, ajuda o homem a reencontrar as suas origens
e os encantos primitivos da terra. Todo o caminho tem uma magia – Kado é
o caminho das flores; Cha-do, a arte do chá; e Sho-do,
a arte da caligrafia, ou a beleza na escrita da palavra.
Cada manifestação artística japonesa possui o seu próprio caminho. Um
caminho vem de algum lugar e leva a algum lugar, mantendo um vínculo
inquebrável entre passado, presente e futuro.
No Kado insere-se a minha arte, a Ikebana, que ocupa um
lugar de destaque na vida japonesa. É assim que se designa a decoração floral,
que data dos primórdios da civilização. As culturas mais antigas, como a
egípcia, mostram-nos claramente que as flores sempre foram fonte de inspiração
para adornos e outras expressões artísticas. A palavra ikebana resulta da fusão
do antigo verbo "acordar", ikeru,
e de bana,
que significa "flor". Assim,
ikebana
é acordar as flores para a vida, é dar vida à beleza das flores
que têm a valiosa função de ligar os corações dos homens.
Amamos as flores desde sempre. Há muito percebemos que elas não são
apenas belas. As flores podem reflectir o passar do tempo e sentimentos
humanos. A ikebana procura harmonizar as suas linhas, de elevado
refinamento estético, com a Natureza que elas majestosamente representam.
Podemos até comparar esta arte com a música:
- uma simples sequência de notas forma uma bela melodia;
- mas elas, notas, enquanto sons de vários instrumentos sincronizados, são capazes de dar origem a uma expressão muito mais rica do que uma melodia isolada».
In Lisa Flores, Cartas a Ninguém, ilustração de Ingrid B. Martins,
colecção Outras Obras, Nova Vega, 2004, ISBN 972-699-785-2.
Na brisa da tarde
a gaivota voa
sobre o mar cintilante.
Paz.
Cortesia de Nova Vega/JDACT