«Desde 1ogo parece utópico elaborar um programa de governo sem encontrar
os meios para os realizar. O municipalismo é deliberadamente apolítico, mantém-se
por definição à margem dos partidos nacionais cuja supressão preconiza, nega ou
minimiza o poder central; os seus partidários são os cidadãos municipais que
ainda estão por nascer. Como portanto obrigar o poder a realizar o municipalismo?
Em que interesses basear a expansão da ideia municipalista? Como todos os
utopistas Herculano parece ter sonhado em certo momento, 1ogo a seguir ao golpe
de estado
de Saldanha, a efectivação da -sua ideia pelo poder pessoal, a utopia
por excelência, esquecendo que o poder pessoal tem de assentar em alguma força.
Quando viu desvanecer-se esta ilusão, ele próprio se desmentiu colaborando na
constituição de um grande partido nacional, o partido histórico.
Herculano constrói a utopia municipalista como se ignorasse o facto de
que os partidos políticos da sua época representam interesses e grupos sociais
que se estendiam a toda a extensão do território, quando não radicavam em
interesses internacionais. A agiotagem e a banca apoiavam o Cabralismo
não eram evidentemente um episódio local, mas uma rede que não conhecia limites
municipais; o mesmo se poderia dizer do grupo que empalmou a Regeneração;
ou do Setembrismo que estabeleceu pautas protecionistas para atender
aos interesses dos pequenos industriais que o apoiavam, etc..
Para reformar a estrutura política no sentido municipalista seria
preciso começar por refazer pelos alicerces a estrutura social do país; e para
isso seria preciso revolucionar a sua estrutura económica a começar pela
própria propriedade agrícola, que no fundo o municipalismo pretendia defender. Por
outras palavras, destruir os partidos políticos pressuporia destruir os grupos
sociais em que se apoiavam, portanto a base económica donde eles nascem, o que
equivalia a destruir toda a ordem social existente na época. Mas contraditoriamente,
o municipalismo destinava-se a perpetuar um especto fundamental dessa ordem
económica e social.
Esta complexidade do problema escapava a Herculano porque, como vimos,
ele considerava o parlamentarismo sob o aspecto puramente político, sem
investigar as suas raízes económicas que conhecia incompletamente. O que não
quer dizer que esta utopia política não tivesse a sua base económica.
Simplesmente era uma base quimérica, porque considerava o país como uma
associação de proprietários rurais, esquecendo que a vida económica evolui
constantemente, que todos os seus aspectos são inter-relacionados, e que,
dentro dela, determinadas funções têm uma importância central.
É interessante assinalar que Herculano tendia a considerar a agiotagem
sob o aspecto puramente local da usura, e pretendia combatê-la com meios locais
como eram os bancos-cooperativas municipais. Não atingia o escalão da banca
nacional e internacional. Por outro lado parece que não tinha em devida conta o
facto de que a grande maioria da população camponesa é constituída não por
proprietários mas por trabalhadores, os quais ficariam praticamente fora da
organização política dos municípios». In António José Saraiva, Herculano
Desconhecido. 1851-1853, Edições SEN, Porto, 1953.
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