domingo, 2 de dezembro de 2012

Herculano Desconhecido. 1851-1853. António José Saraiva. «É interessante assinalar que Herculano tendia a considerar a agiotagem sob o aspecto puramente local da usura, e pretendia combatê-la com meios locais como eram os bancos-cooperativas municipais. Não atingia o escalão da banca nacional e internacional»

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«Desde 1ogo parece utópico elaborar um programa de governo sem encontrar os meios para os realizar. O municipalismo é deliberadamente apolítico, mantém-se por definição à margem dos partidos nacionais cuja supressão preconiza, nega ou minimiza o poder central; os seus partidários são os cidadãos municipais que ainda estão por nascer. Como portanto obrigar o poder a realizar o municipalismo? Em que interesses basear a expansão da ideia municipalista? Como todos os utopistas Herculano parece ter sonhado em certo momento, 1ogo a seguir ao golpe de estado de Saldanha, a efectivação da -sua ideia pelo poder pessoal, a utopia por excelência, esquecendo que o poder pessoal tem de assentar em alguma força. Quando viu desvanecer-se esta ilusão, ele próprio se desmentiu colaborando na constituição de um grande partido nacional, o partido histórico.
Herculano constrói a utopia municipalista como se ignorasse o facto de que os partidos políticos da sua época representam interesses e grupos sociais que se estendiam a toda a extensão do território, quando não radicavam em interesses internacionais. A agiotagem e a banca apoiavam o Cabralismo não eram evidentemente um episódio local, mas uma rede que não conhecia limites municipais; o mesmo se poderia dizer do grupo que empalmou a Regeneração; ou do Setembrismo que estabeleceu pautas protecionistas para atender aos interesses dos pequenos industriais que o apoiavam, etc..
Para reformar a estrutura política no sentido municipalista seria preciso começar por refazer pelos alicerces a estrutura social do país; e para isso seria preciso revolucionar a sua estrutura económica a começar pela própria propriedade agrícola, que no fundo o municipalismo pretendia defender. Por outras palavras, destruir os partidos políticos pressuporia destruir os grupos sociais em que se apoiavam, portanto a base económica donde eles nascem, o que equivalia a destruir toda a ordem social existente na época. Mas contraditoriamente, o municipalismo destinava-se a perpetuar um especto fundamental dessa ordem económica e social.
Esta complexidade do problema escapava a Herculano porque, como vimos, ele considerava o parlamentarismo sob o aspecto puramente político, sem investigar as suas raízes económicas que conhecia incompletamente. O que não quer dizer que esta utopia política não tivesse a sua base económica. Simplesmente era uma base quimérica, porque considerava o país como uma associação de proprietários rurais, esquecendo que a vida económica evolui constantemente, que todos os seus aspectos são inter-relacionados, e que, dentro dela, determinadas funções têm uma importância central.
É interessante assinalar que Herculano tendia a considerar a agiotagem sob o aspecto puramente local da usura, e pretendia combatê-la com meios locais como eram os bancos-cooperativas municipais. Não atingia o escalão da banca nacional e internacional. Por outro lado parece que não tinha em devida conta o facto de que a grande maioria da população camponesa é constituída não por proprietários mas por trabalhadores, os quais ficariam praticamente fora da organização política dos municípios». In António José Saraiva, Herculano Desconhecido. 1851-1853, Edições SEN, Porto, 1953.

Cortesia de Edições SEN/JDACT