«Em contraposição à mulher-menina surge a mulher-mãe, Belle Bennett, de
uma grande calma, não perturbando nem comovendo, apenas irradiando paz e
segurança em seu redor. Mas a mulher
frágil é, segundo António Ferro, nitidamente dominante sobre os demais
paradigmas. "As mulheres, na América, são bebés: andam sempre ao colo dos homens."
É óbvio que o autor ao retratar a mulher americana não é inocente. Seria
desejável que a portuguesa pudesse construir um universo de representação
social tão "saudável" como a norte-americana.
Aliás, numa outra obra de 1917, As Grandes Trágicas do Silêncio, a mulher
em estado puro, mítica, é personificada em Francesca
Bertini, entre a tranquilidade e o desassossego. Os olhos inspiram a
tranquilidade mas os dedos são nervosos. Esta figura feminina já por si foge
dos padrões usuais, já que a mulher tradicional deveria ser por excelência calma,
servil, obediente, passiva. Os corpos são esguios. São mulheres que não
partilham em nada o estar habitual das portuguesas.
- "Francesca Bertini encarna o Amor no estado puro e consequentemente ela encarna a Mulher no que ela tem de mais essencial".
Outro tipo feminino que António Ferro contempla é o da mulher/desejo. O
corpo, ao mesmo tempo que é objecto de desejo, é simultaneamente objecto de
perdição. Trata-se de Pina Menichelli,
a estrela italiana que atrai como um abismo.
- "Pina tem a beleza do mal. O mal é mais forte, mais insinuante do que o bem”.
Embora o desejo não deixe de ser considerado matéria ingrata e como tal
de difícil abordagem, já é possível em António Ferro encontrar na beleza
corporal uma legitimação do desejo, do homem em relação à mulher e vice-versa. Quando
se trata de dividir as mulheres consoante os beijos que elas inspiravam,
falava-se no beijo cristão de Borelli, em contraposição ao beijo de
Satanás de Pina. Pura matéria de gosto, para o autor.
Já em a Idade do Jazz Band de 1923 Ferro se referia ao artifício como o
que constituía o traço verdadeiramente natural nos anos 20. As mulheres eram
divididas consoante os pintores modernistas, Matisse, Picasso ou então, segundo
os grandes costureiros da época, Poiret, Lanvin. Pela primeira vez se faz a
apologia da mulher feia:
- "A mulher feia é a mulher rebelde, original".
Poderemos questionar de que maneira António Ferro serve de contraponto
às vozes que teimavam em ver na mulher um ser que unicamente servia para casar,
ter filhos e ser boa dona de casa. Contudo, é significativo que uma voz
mencionasse através de exemplos recolhidos nos Estados Unidos uma outra forma
de estar no feminino. Também Teixeira Gomes em Sabina Freire (1905)
apresenta um outro tipo de mulher: emancipada parisiense, acutilante
na crítica ao sistema social e político português, visto que se casa com um
algarvio, acaba por abandonar o marido que se moldava a uma mãe prepotente.
A tragédia deflagra quando a bebida envenenada que preparara para a sogra
é bebida pelo próprio marido. Urbano Tavares Rodrigues, que estudou profundamente
Teixeira Gomes, encontra neste autor uma "atitude esclarecidamente
feminista". Em Sabina Freire a mulher emancipada
ousa falar ao marido das experiências sexuais anteriores ao casamento, posição
demasiadamente radical para os inícios do século XX no nosso país.
Para além de Teixeira Gomes e de Ferro, outras vozes falavam da emancipação feminina se recolhermos os
exemplos dos jornais e revistas que chegavam ao universo feminino burguês». In
Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa
(1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN
972-8047-63-0.
Cortesia de E. Colibri/JDACT