«E eles quando vieram e acharam assim aquelas cousas, britaram o bôlo e
lançaram-no a longe, e com as azagaias tiraram ao espelho, até que o britaram
em muitas peças, e romperam o papel, mostrando que de nenhuma destas cousas não
curavam. - Pois que assim é, - disse Gomes Pires contra os bésteiros - tirai-lhe
ás bestas, sequer que conheçam que somos gente que lhe poderemos fazer dano,
quando por bem comnosco não quiserem convir.
‘Mas os Guineus, vendo a tenção
dos outros, começaram de lhe enviar o retorno, tirando-lhe isso mesmo ás
frechas e ás azagaias, das quaes trouveram algumas a este reino. E são as
frechas assim feitas, que não teem penas nem mossa para entrar a corda, somente
a moiz toda uma; e são curtas e de boinhos ou de caniço, e os ferros que teem
são longos, e deles são de pau encastoados nas astas, que querem semelhar fusos
de ferro com que fiam as mulheres em esta terra, e tem isso mesmo outros
harpões pequenos de ferro, as quaes frechas todas igualmente são empeçonhadas
com herva. E as azagaias são de sete ou oito garfos de harpões cada azagaia’.
Dali seguiram mais avante algum espaço, até que acharam um rio, no qual
fizeram entrada com o batel; e em umas casas que ali acharam filharam uma
mulher; e depois que a tiveram na caravela, tornaram outra vez ao rio, com intenção
de subirem mais avante, para trabalharem de fazer alguma boa presa.
‘E indo assim seguindo sua
viagem, vieram sobre eles quatro ou cinco barcos de Guineus, corregidos como
homens que queriam defender sua terra, cuja peleja os do batel não quiseram
experimentar, vendo a grande vantagem que os contrairos tinham, temendo sobre
tudo o grande perigo que havia na peçonha com que tiravam. E começaram de se
recolher o- melhor que puderam para seu navio; mas vendo como um daqueles barcos
se adiantava muito, voltaram sobre ele, o qual tornando para os outros,
querendo os nossos chegar a ele antes que se acolhesse, porque parecia que era
já afastado boa parte de companhia, chegou-se o batel tanto que um daqueles Guineus
fez um tiro contra ele, e acertou-se de dar com a frecha a Álvaro Fernandes per
a perna; mas porque ele já era avisado de sua peçonha, tirou aquela frecha muito
asinha e fez lavar a chaga com urina e azeite, d’aí untou-a muito bem com
teriaga, e prouve a Deus que lhe aproveitou, como quer que sua saúde passasse
por grande trabalho, que certos dias esteve em passo de morte.
Os outros da caravela, ainda que
seu capitão assim vissem ferido, não leixaram porem de seguir avante por aquela
costa, até que chegaram a uma ponta de areia, que se fazia em direito [...]’
Mas, quando damos um salto geográfico, verificamos que uma das coisas
que impressionaram os portugueses na China foi a tipografia, Jerónimo
Osório, Tratado de Glória,
chamando-lhe o reino da polícia, por excelência. O progresso na China faz-se por
justiça, por exames, por estudos, não por aderências, cunhas, e favores da
Corte, João de Barros pensa a diferença de uma forma crítica em
relação a Portugal. F. M. Pinto relata-nos esse olhar crítico através de um
ancião e de uma criança chinesa que fazem o discurso da denúncia, realçando que
o encontro dos portugueses com os asiáticos se faz sob o signo da religião, com
Deus na boca, e os actos contrários a esse Deus.
O próprio João de Barros, Ásia,
Décadas, faz o elogio da civilização chinesa, afirmando que a sua grande
sabedoria fez com que não ousasse uma expansão planetária, porque a sociedade é
tanto mais fraca quanto mais longe estiver do seu espaço. Sabe-se que os
chineses navegaram também num movimento inverso ao dos portugueses, tendo
chegado a Quiloa / Moçambique. Garcia
de Orta, nos seus Colóquios, dá-nos notícia das
viagens dos juncos chineses até ao golfo Pérsico (INCM, Lisboa, 1987). Segundo
alguns historiadores, os chineses teriam mesmo dobrado o cabo da Boa Esperança,
mas os seus velhos do Restelo venceram
o de Camões...
O encontro através do Índico, com o mundo asiático, efectuou-se como
símbolo de um percurso ou de uma metamorfose de relações, a da visualização
cinematográfica que a arte japonesa representou, a arte Nambam, inspirada
nos hábitos e costumes daqueles bárbaros do sul, namban ji, que aportaram ao Japão em
barcaças como nunca se tinham visto, trajando de modo singular, mas possuidores
de armas poderosas. Tanegaxima, terra a que Fernão Mendes Pinto, o Diogo Zeimoto?) aportou em 1544-1545
chegando à ilha da raiz do sol, Japão. Espantou o chefe local, dáimio, com o poder das suas espingardas,
de que lhe foram oferecidas duas, passando a ser o fabricante de tanegaximas
(= espingardas).
A arte Nambam, que através da sua leitura icónica distingue as hierarquias
e as funções pelo vestuário e pelo modo como se organiza o cortejo da saída da
nau dos navegadores portugueses que desembarcaram em Nagasáqui e noutros portos
japoneses». continua
In António Luís Ferronha, O Confronto do Olhar, O encontro dos
Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho,
1991, ISBN 972-21-0561-2.
Cortesia de Caminho/JDACT