domingo, 9 de dezembro de 2012

Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África séculos XV-XX. Isabel Castro Henriques. «… os marinheiros deviam capturar homens e mulheres que deviam trazer para Portugal para permitir alargar o conhecimento linguístico. Na medida em que os textos portugueses, assim como os italianos, insistem em sublinhar a maneira como pretendem resolver esta questão complexa»


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Artifícios da História. Alteridade e História
Mar. Natureza. Língua
«Todavia, como avançar no reconhecimento do processo histórico se não dispusermos de um quadro geral, o do conhecimento, onde devem tomar lugar os diferentes aspectos contidos nos conceitos/noções básicas? Como considerar conceitos como colonização ou império colonial ou aculturação sem levar em linha de conta o quadro global, que não é definido em momento algum?
Esta tarefa é fundamental, sobretudo no caso da África, na medida em que a geografia dominante ensinava que a zona tórrida era inabitada e inabitável. O que explica as duas grandes dificuldades a que tiveram de fazer face os marinheiros portugueses. O primeiro grande obstáculo era o próprio mar; o segundo, a língua do Outro.
A lenda portuguesa, que não dispõe de base científica, parte do princípio que os portugueses não tinham medo do mar. O historiador Jean Delumeau já demonstrou que, na Europa, a simples referência ao mar provocava o medo geral. Este facto cultural explica dois outros:
  • o primeiro refere-se à dificuldade em encontrar marinheiros, que frequentemente eram recrutados entre criminosos arrancados às cadeias;
  • o segundo, sublinha o facto de o mar só ter desempenhado uma função lúdica já no século XVIII. O historiador Alain Corbin afirma que só depois de 1750 o mar adquiriu o estatuto que é hoje o seu. Lugar do ócio e do lazer.
Os dois elementos estão directamente associados para explicar as razões que impedem os marinheiros portugueses de contornar o famoso Cabo Bojador, que nos mapas contemporâneos se transformou em Cabo Juby. Hoje, para nós, esta hesitação, estes recuos, estas incertezas, parecem inexplicáveis, ou dificilmente explicáveis. Só o conhecimento dos quadros intelectuais da época permite dar a explicação necessária. De resto, podemos também compreender a imensa alegria manifestada pelos portugueses, entre os quais o Infante Henrique, quando Gil Eanes regressa da costa africana trazendo, numa meia pipa, as flores autóctones que se assemelhavam às rosas de Santa Maria.
Esta curta referência, tão liricamente tratada por Gomes Eanes de Zurara,  devia fazer parte integrante das explicações históricas, uma vez que não há nenhum conceito relacionado com a natureza, como se esta não fizesse parte do conhecimento. Ora um dos elementos base destas operações reside na necessidade de afrontar a natureza, caracterizada por diferenças singulares, que colocam os marinheiros perante espaços onde o homem europeu não conhece coisa alguma e não sabe como agir.
A intervenção lógica do homem não pode verificar-se enquanto não dispuser ele do conhecimento mínimo indispensável à identificação da geografia, dos acidentes costeiros, mas também da natureza. Disso nos dão conta o gesto de Gil Eanes e o discurso de Zurara: ao trazer para Portugal estas rosas de Santa Maria, o marinheiro põe em evidência a existência de formas botânicas homólogas das portuguesas. O mundo do ultramar, não é por isso pensável apenas em rermos de selvajaria, como podiam levar a concluir os longos traços de deserto que os marinheiros encontram no percurso para sul. Muito pelo contrário: nesta costa africana, que o não conhecimento considerava áspera e por isso radicalmente selvagem, crescem plantas tão reconhecíveis e líricas como as rosas de Santa Maria.
Trata-se de um passo importante para estabelecer as relações entre os europeus, que continuam desconfiados da selvajaria africana, e a costa africana. Esta desconfiança assenta num segundo elemento fundamental: o problema linguístico. Lendo Zurara, compreende-se qual o mecanismo interno da organização portuguesa:
  • estava-se convencido em Lisboa e em Lagos, que em África só se falava mourisco. O que quer dizer também que se pensava que os africanos eram geralmente muçulmanos, uma vez que a língua aparece constantemente associada à religião.
As instruções da burocracia portuguesa procuraram criar uma estratégia eficaz para fazer face a esta situação, quando dela se deram conta:
  • os marinheiros deviam capturar homens e mulheres que deviam trazer para Portugal para permitir alargar o conhecimento linguístico. Podíamos falar de uma política linguística, na medida em que os textos portugueses, assim como os italianos, como é o caso de Luigi da Ca da Mosto, insistem em sublinhar a maneira como os técnicos portugueses pretendem resolver esta questão complexa.
Ora, este aspecto central é totalmente esquecido nos programas do ensino da História, como se os homens pudessem estabelecer contactos sem passar por este tecido complexo ou até como se a missionação, referida nos conceitos, pudesse ter funcionado sem a mínima referência ao capital simbólico dos muitos Outros que ocupavam o espaço africano do Cabo Bojador ao Cabo da Boa Esperança». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.

Cortesia de Caleidoscópio/JDACT