Artifícios da História. Alteridade e História
Mar. Natureza. Língua
«Todavia, como avançar no reconhecimento do processo histórico se não dispusermos
de um quadro geral, o do conhecimento, onde devem tomar lugar os diferentes
aspectos contidos nos conceitos/noções básicas? Como considerar
conceitos como colonização ou império colonial ou aculturação
sem levar em linha de conta o quadro global, que não é definido em momento
algum?
Esta tarefa é fundamental, sobretudo no caso da África, na medida em
que a geografia dominante ensinava que a zona tórrida era inabitada e
inabitável. O que explica as duas grandes dificuldades a que tiveram de fazer
face os marinheiros portugueses. O primeiro grande obstáculo era o
próprio mar; o segundo, a língua do Outro.
A lenda portuguesa, que não dispõe de base científica, parte do
princípio que os portugueses não tinham medo do mar. O historiador Jean Delumeau já demonstrou que, na
Europa, a simples referência ao mar provocava o medo geral. Este facto cultural
explica dois outros:
- o primeiro refere-se à dificuldade em encontrar marinheiros, que frequentemente eram recrutados entre criminosos arrancados às cadeias;
- o segundo, sublinha o facto de o mar só ter desempenhado uma função lúdica já no século XVIII. O historiador Alain Corbin afirma que só depois de 1750 o mar adquiriu o estatuto que é hoje o seu. Lugar do ócio e do lazer.
Os dois elementos estão directamente associados para explicar as razões
que impedem os marinheiros portugueses de contornar o famoso Cabo Bojador, que nos mapas
contemporâneos se transformou em Cabo Juby.
Hoje, para nós, esta hesitação, estes recuos, estas incertezas, parecem
inexplicáveis, ou dificilmente explicáveis. Só o conhecimento dos quadros
intelectuais da época permite dar a explicação necessária. De resto, podemos
também compreender a imensa alegria manifestada pelos portugueses, entre os
quais o Infante Henrique, quando Gil Eanes regressa da costa africana
trazendo, numa meia pipa, as flores autóctones que se assemelhavam às rosas
de Santa Maria.
Esta curta referência, tão liricamente tratada por Gomes Eanes de Zurara, devia fazer parte integrante das explicações
históricas, uma vez que não há nenhum conceito relacionado com a natureza,
como se esta não fizesse parte do conhecimento. Ora um dos elementos base
destas operações reside na necessidade de afrontar a natureza, caracterizada por
diferenças singulares, que colocam os marinheiros perante espaços onde o homem
europeu não conhece coisa alguma e não sabe como agir.
A intervenção lógica do homem não pode verificar-se enquanto não dispuser
ele do conhecimento mínimo indispensável à identificação da geografia, dos
acidentes costeiros, mas também da natureza. Disso nos dão conta o gesto de Gil
Eanes e o discurso de Zurara: ao trazer para Portugal estas rosas de
Santa Maria, o marinheiro põe em evidência a existência de formas botânicas
homólogas das portuguesas. O mundo do ultramar, não é por isso pensável apenas
em rermos de selvajaria, como podiam levar a concluir os longos traços de deserto
que os marinheiros encontram no percurso para sul. Muito pelo contrário: nesta
costa africana, que o não conhecimento considerava áspera e por isso
radicalmente selvagem, crescem plantas tão reconhecíveis e líricas como as
rosas de Santa Maria.
Trata-se de um passo importante para estabelecer as relações entre os
europeus, que continuam desconfiados da selvajaria africana, e a costa africana.
Esta desconfiança assenta num segundo elemento fundamental: o problema
linguístico. Lendo Zurara, compreende-se qual o mecanismo interno da organização
portuguesa:
- estava-se convencido em Lisboa e em Lagos, que em África só se falava mourisco. O que quer dizer também que se pensava que os africanos eram geralmente muçulmanos, uma vez que a língua aparece constantemente associada à religião.
As instruções da burocracia portuguesa procuraram criar uma estratégia eficaz
para fazer face a esta situação, quando dela se deram conta:
- os marinheiros deviam capturar homens e mulheres que deviam trazer para Portugal para permitir alargar o conhecimento linguístico. Podíamos falar de uma política linguística, na medida em que os textos portugueses, assim como os italianos, como é o caso de Luigi da Ca da Mosto, insistem em sublinhar a maneira como os técnicos portugueses pretendem resolver esta questão complexa.
Ora, este aspecto central é totalmente esquecido nos programas do
ensino da História, como se os homens pudessem estabelecer contactos sem passar
por este tecido complexo ou até como se a missionação, referida nos conceitos,
pudesse ter funcionado sem a mínima referência ao capital simbólico dos muitos Outros
que ocupavam o espaço africano do Cabo Bojador ao Cabo da Boa Esperança». In
Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África
séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História,
2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.
Cortesia de Caleidoscópio/JDACT