terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Prémio Afonso X, O Sábio. Leituras. A Última Muralha. O Maior Exército na Península Ibérica. Jesús Sánchez Alalid. «”É uma injustiça! Não podemos pagar! De onde é que vamos tirar o dinheiro? Como vamos dar de comer aos nossos filhos? Como vamos viver? Alá nos defenda! Justiça! Justiça e honestidade” em nome de Alá!»

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«- Nada! Nada me resta deste casamento! Nem marido, nem filhos, nem casa! Maldita! Maldita cegonha! - Maldita cegonha! Maldita cegonha! Maldita cegonha!... – repetia Judit. Após a oração da tarde, o wali de Mérida, Mahmud al-Meridi, deparou-se na porta da mesquita Aljama com uma multidão violenta e vociferante. Não o esperava e perdeu a sua compostura. Estava acompanhado pelo seu secretário privado, pelo mufti e por um grupo de notáveis. Ficaram todos surpreendidos e trocaram olhares cheios de preocupação.
O chefe da guarda adiantou-se e, em plena rua, gritou para a multidão enfurecida: - O que se passa? Porque protestam desta maneira? Fez-se silêncio. Raios de luz enérgica enfrentavam as nuvens escuras que pressagiavam chuva. O ar estava fresco, mas os ânimos estavam acalorados. - Abram alas! Afastem-se imediatamente! - rugiu o chefe da guarda. - Deixem passar o governador!
Ninguém se mexeu. O wali Mahmud al-Meridi permanecia inescrutável, determinado a não permitir que percebessem o seu desconcerto. Vestia uma túnica berbere, sapatos de gazela africana e turbante de damasco; os seus olhos negros brilhavam num rosto de pele escura e a sua barba ampla espalhava-se, ondulada e entremeada de branco, pela parte superior do peito. O secretário particular sugeriu-lhe ao ouvido, com toda a humildade, que perguntasse pelo cádi dos muladis. O wali perscrutou a multidão com um olhar duro e perguntou finalmente: - Está entre vocês Sulayman Aben Martin?
Ouviu-se um murmúrio denso, que foi crescendo até se converter, de novo, em gritaria. De seguida, vários homens abriram caminho, avançando até à porta da mesquita. Entre eles destacava-se um, alto, de constituição delgada e com uma barba ruiva cuidada que, fazendo-se ouvir acima dos demais, disse: - Aqui estou!

As línguas emudeceram-se e todos os olhos se fixaram nele, antes de se voltarem, curiosos, para ver a reacção do wali. Este, olhando com condescendência para o homem alto de barba ruiva, disse: - Sulayman Aben Martin, meu amigo, hoje é sexta-feira e acabámos de colocar os nossos corações nas mãos do criador. O que pode perturbar as vossas almas ao ponto de se reunirem aqui, armando esta confusão?
A multidão exaltou-se e irrompeu de novo um murmúrio ensurdecedor e confuso. Até que o chefe da guarda gritou com severidade: - Silêncio! Deixem que o cádi dos muladis responda!
As vozes silenciaram-se. O tal de Sulayman endireitou-se e, com uma expressão angustiada, falou do seguinte modo: - Wali Mahmud al-Meridi, governador e juiz supremo de Mérida, nenhum dos que aqui estão deseja estragar-lhe a sexta-feira, nem trazer à sua alma preocupações maiores do que aquelas próprias da dignidade do seu cargo. Deus é o Criador e o Senhor, que dispõe segundo os seus desejos. Ele diz "" e existimos; ‘não sejas’ e não existimos. E quem entre nós pode acrescentar ou retirar algo àquilo que decidiu sobre as nossas vidas? Nem eu, que o Todo-Poderoso me livre, acrescentarei nada esta manhã àquilo que o mafti disse, com toda a sabedoria, no sermão, no minbar da mesquita de Aljama. Mas bem o sabem todos os fiéis aqui reunidos que pregou sobre a purificação, a base da fidelidade dos crentes para com Deus único e o Seu Profeta Maomé e o cerne da honestidade que um homem deve a si mesmo e aos outros.
Sulayman teve de interromper o seu discurso, já que todos à sua volta tinham começado a aplaudir. Então o wali ergueu nervosamente as mãos e exclamou: - Deixem-no terminar! Como posso saber o que vos traz, aqui, se não param com este escândalo? O cádi dos muladis elevou de novo a voz e disse: - A nossa cidade não está feliz! Foi um ano muito mau para todos. Não parou de chover desde o fim do jejum e as colheitas ficaram arruinadas, as estradas estão intransitáveis e não há, forma de se tirar nada das hortas. É verdade que há erva com fartura, mas as ovelhas têm os cascos doentes por causa de tanta água... O Todo-Poderoso assim o quis! Bendita seja a sua vontade! Pois Ele dá e tira e ninguém ousará questionar os seus desígnios.


Mas, apesar de ter sido tão desfavorável o tempo e tão grandes as perdas, nem por isso diminuíram os impostos, sendo sim cada vez maiores. As pessoas estão desesperadas!
As vozes intensificaram-se. Alguns gritavam furiosos: - É uma injustiça! Não podemos pagar! De onde é que vamos tirar o dinheiro? Como vamos dar de comer aos nossos filhos? Como vamos viver? Alá nos defenda! Justiça! Justiça e honestidade em nome de Alá!
Embora o wali Mahmud se esforçasse por aparentar calma, o seu rosto começava a deixar transparecer a inquietação que o dominava. Em gesto de aviso, o secretário particular aproximou-se dele e aconselhou-o entre dentes: - Será melhor ir para o palácio. Isto pode tornar-se complicado... O chefe da guarda ordenou aos guardas que se pusessem diante do cortejo. As pessoas afastaram-se com grande relutância e continuaram a gritar bastante alto: - Alá é Grande! Justiça em seu nome! Misericórdia! Baixem os impostos!...
Por seu lado, o cádi dos muladis e os seus companheiros tentavam recuperar a ordem para continuar a conversa, mas a turba não estava disposta a ouvir ninguém, apenas querendo manifestar a sua raiva». In Jesús Sánchez Alalid, Alcazaba, Ediciones Planeta, 2012, A Última Muralha, Mouros, Cristãos e Judeus unidos pelo Direito à Liberdade, Marcador Editora, 2012, ISBN -978-989-8470-57-7.

Cortesia de Marcador/JDACT