quinta-feira, 1 de maio de 2014

A descoberta da economia-mundo. Immanuel Wallerstein. «… mas de factores / aspectos / elementos que intervêm integralmente numa história única. Para ir além destes preconceitos nocivos, é necessário “des-pensar” os nossos saberes. … todos empregam a palavra economia ou outras palavras tradicionalmente ligadas à economia…»

Cortesia de wikipedia

A História é Geográfica
«(…) E como o sistema-mundo moderno pôde e teve de estender-se por todo o mundo para envolver todas as partes sob o mesmo regime, o mesmo complexo histórico-geográfico, como diria Magalhães Godinho, não existe nenhuma zona que escape a estas consequências globais. A ruptura social exprimiu-se através da criação de um sistema capitalista que pôde sobreviver e consolidar-se no seio de uma economia-mundo. O leitmotiv do capitalismo é a acumulação incessante do capital. O resultado é que os que triunfam são, na maior parte, os que recusam obrigações sociais com o fito de maximizar o rendimento imediato da empresa. Um elemento central desta maximização é a externalização máxima dos custos de produção.
Há três métodos principais para externalizar os custos. Despeja-se noutro lado os restos da produção, sobretudo o que for tóxico. Não se tem preocupações a respeito da reprodução das matérias-primas da produção. Depende-se de outros (sobretudo das autoridades públicas) para construir as infraestruturas que facilitam o transporte e a comunicação. Na medida em que possa escapar-se a estes três custos de produção, a margem de lucro aumenta.
De início, era simples, em certo sentido. Primeiro, as estruturas burocráticas capazes (se quisessem) de limitar os excessos eram muito débeis e dispersas. Em segundo lugar, estas acções pareciam legítimas e, em todo o caso, a aliança na prática entre os produtores e as autoridades públicas era suficientemente forte para que não se suscitassem tais questões. Em terceiro lugar, as zonas relativamente vagas para receber os resíduos, as zonas relativamente abundantes para obter as matérias-primas, faziam com que não se tivesse muita consciência dos danos ocorridos. Enfim, e esta é talvez a explicação mais fundamental, em geral os custos eram pagos pelos pobres e pelos outros e não tinham um impacto real sobre a vida das elites.
Em todo o caso, foi preciso que passassem pelo menos quatro séculos para que estes danos se acumulassem ao ponto de haver uma reacção política importante, o que significa os últimos 30 anos. Chegou-se a um momento em que se começa (com justa causa) a recear consequências difíceis de remediar, consequências que ameaçam tanto as elites como as camadas marginais. Vistas em conjunto, as relações entre o mundo físico-geográfico e o mundo social já viram melhores dias.

A unicidade da história
O homem real não é actor separadamente de uma história politica, de uma história económica, etc.; todo ele intervém integralmente numa história única, que é a história da sua plurifacetada mas uma actividade. In Godinho, 1971.
O que me atrai nesta citação é que Godinho começa por falar do homem real, em contraste implícito com o homem abstracto que tantos analistas constroem. E, a partir deste sólido rochedo, chega à conclusão de que a actividade do homem é composta por múltiplos aspectos, mas permanece, apesar disso, única ou unificada, aquilo a que chamo a unicidade da história. O seu grande livro, mas também os seus múltiplos ensaios, reflectem fielmente este compromisso com a totalidade, que é um compromisso com a realidade vivida, concreta. Ele não fala numa abordagem multidisciplinar, mas numa abordagem unificada, o que constitui uma nuance essencial. É que não se trata de um agregado de dados recolhidos separadamente por investigadores distintos e diferenciados, mas de factores / aspectos / elementos que intervêm integralmente numa história única. Ele faz sua uma aspiração que é a aspiração de uma minoria de investigadores e que só é realizada por uma minoria dentro desta minoria, por ser tarefa eminentemente difícil. A dificuldade reside, não na amplitude da investigação (falso problema), nem na escrita sintética (que está ao alcance de todos os que têm uma visão clara), mas sim na conceptualização. A conceptualização é difícil porque se faz a contrapelo, porque exige que nos desembaracemos das nossas socializações intelectuais, das hipóteses de tal modo interiorizadas que nem sequer nos damos conta disso. Para ir além destes preconceitos nocivos, é necessário des-pensar os nossos saberes.
Quando se observa o plano de obra do seu grande livro, não se trata de nada que não seja económico, o próprio título do livro, os títulos das três partes, os títulos de vários capítulos, todos empregam a palavra economia ou outras palavras tradicionalmente ligadas à economia. E, no entanto, quando se lê o texto, está-se liberto deste espartilho. Percorre-se o mundo real sem que nos apontem isso como uma espécie de travessia de fronteiras. Porque é que é tão difícil para nós despirmos esta tríade enraizada, o económico, o político, o sócio-cultural? Porque é que insistimos em pensar nestas categorias como domínios, como acantonamentos, quase como Estados soberanos? Também isso faz parte da ruptura do mundo moderno, separando-o de outros sistemas históricos. Esta ideia ia progredindo lentamente desde o século XVI, mas foi só no século XIX que ela foi consagrada e institucionalizada nas estruturas universitárias reconstituídas. Mas porquê nesse momentoIn Immanuel Wallerstein, A descoberta da economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le Portugal et le Monde: Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho, Paris, 2003, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 69, 2004.

Cortesia de RCSociais/JDACT