Ano
da Era do Senhor de 824. A origem de tudo
«Sobre a garupa da sua
cavalgadura, o bispo Teodomiro seguia os passos do ermitão com a hesitação de quem
acompanha um pobre louco que se extraviou dos caminhos do Senhor. Não tivera outro
remédio senão atender aos chamamentos contínuos daquele homem. No fim, de má
vontade e pouco convencido, acedera a acompanhá-lo até onde afirmava ver as alucinações
divinas. Paio era um ser pequeno e esquelético, um espectro da sua própria sombra,
com um cabelo liso e cheio de cãs, que lhe caía pelos ombros. Trazia vestida uma
velha túnica de lã de cor desmaiada e pejada de remendos. Quando o frio apertava,
envolvia-se numa capa que lhe fora dada por um homem em sinal de agradecimento
pela comida e pelo abrigo que ele lhe dera durante uma noite de tempestade terrível.
Andava sempre descalço, excepto quando tinha de viajar para longe. Nessas alturas,
usava umas socas de madeira, pacientemente feitas pelas suas próprias mãos, que
o protegiam da lama e da humidade. Ninguém lhe sabia a idade, mas tinha o
aspecto de um ancião decrépito, afectado por desvarios nos modos e, sobretudo, no
discurso. Vivia na mais completa pobreza, em absoluto despojamento da alma e do
corpo e numa miséria evidente. Decidira tornar-se ermitão porque, segundo dizia
a quem lhe dava ouvidos, Deus lho havia exigido num sonho. No parecer do bispo
Teodomiro, o pobre via-se imerso demasiadas vezes nesse tipo de alucinações. Além
disso, dizia que tinha sido o próprio Deus, Senhor todo-poderoso do Céu e da
Terra, quem lhe havia indicado o local exacto onde deveria fixar a sua morada, e,
seguindo a ordem divina, instalara-se num lugarejo solitário chamado Solovio, perto
de Iria Flavia, no bosque de Libredón. Ali tinha construído o que chamava de a sua igreja, um cubículo feito de
adobe, pedras do rio e palha onde dormia, vivia e orava e em cujo interior se via
apenas um altar de pedra e uma cruz de madeira pendurada na parede. Diziam as más
línguas que o seu objectivo era obter uma relíquia, qualquer que fosse, para
assim converter a sua igreja num centro de oração e devoção em que se pudesse adorar
a Deus. Outros afirmavam que as suas intenções eram mais obscuras e que, naquele
lugar, exercia práticas pouco ortodoxas, mais próximas do paganismo do que das devoções
impostas pela Santa Madre Igreja, sob a capa de um santo ascetismo. Não obstante,
eram muitos os que o consideravam quase santo e o visitavam para lhe pedirem os
seus conselhos e se consolarem com as suas orações e palavras de alento. Alguns
chegavam a implorar-lhe refúgio para despistar quem os perseguia e ele dava-lhes
guarida e protecção. A verdade é que abria a porta a quantos a ela batiam e convidava-os
a entrar, sem lhes perguntar de onde vinham ou para aonde iam. Com os recém-chegados,
limitava-se a orar, lavava-lhes as mãos e os pés, oferecia-lhes tudo o que tinha
para lhes saciar a fome e a sede, ouvia-os, se necessário, para lhes aliviar a alma,
e deixava-os descansar, enquanto lhes vigiava o sono. Depois, os visitantes
partiam, gratos pela companhia reconfortante que o ermitão lhes dispensara.
Teodomiro não via Paio com maus
olhos. Tinha ouvido dizer bem dele e da sua vida dedicada à contemplação divina,
afastado do mundo e renunciando a tudo para consagrar a existência à oração solitária
com o único objectivo de louvar a Deus e aos santos e de pedir perdão pelos pecados
do mundo. Tudo isto o tornava depositário de um virtuosismo digno da admiração de
uma população tão necessitada de apoio moral para as suas crenças. Não obstante,
apesar de o bispo guardar alguns receios relacionados com os rumores sobre rituais
ocultos realizados naquele local, compreendia que aquelas coisas eram boatos, maus
agoiros que podiam provir de alguma língua maldosa que soltasse aquele rumor com
o objectivo de desacreditar um homem em processo de santificação. Mas as visões
místicas de diálogos sonhados com o próprio Deus eram aquilo de que mais desconfiava.
Dar-lhe ouvidos poderia levar ao aumento desmedido do fervor exaltado dos fiéis,
necessitados de estímulos que apoiassem a sua maltratada fé, fervor esse que não
convencia totalmente Teodomiro. Por mais de uma dezena de vezes ao longo dos anos
anteriores, Paio tinha ido à presença do bispo para lhe manifestar uma das suas
visões divinas mais arreigadas: as luzes semelhantes a pequenas estrelas que
via junto ao seu modesto oratório. Na sua opinião, estas não podiam ser senão
o presságio de alguma coisa milagrosa, um sinal da presença celestial de Deus. O
bispo ouvia-o solícito, convidava-o para boas comezainas, que Paio degustava com
ímpeto comedido, e despachava-o com boas palavras, prometendo-lhe que pensaria
sobre o assunto e resistindo à insistência do eremita no sentido de o
acompanhar à sua mísera igreja para que pudesse comprovar com os seus próprios olhos
o que aquele via em noites de neblina. O bispo via-se a braços com problemas demasiado
graves e bastante mais terrenos para perder tempo em viagens com o objectivo de
observar a loucura de um pobre homem, por maior que fosse a santidade que as gentes
lhe atribuíssem». In Paloma Sanchez-Garnica, A Alma das Pedras, tradução de Miguel
Coutinho, Saída de Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-288-0.
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