quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Um País Encantado. Luís Miguel Rocha. «Dentro do quarto já era de esperar mais molestas, mas ainda não se ouve nada, deixemos de coscuvilhices saloias e entremos a ver o que lá se passa, nada podemos fazer para acudir a Margarida, a não ser testemunhar para que nunca mais se repita»

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O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In Jean.Paul Sartre

«(…) Voltemos ao coronel que já encaminha o conde Cosme à saída não vá haver caso entre marido e esposa que tenha que ficar dentro das quatro paredes, quatro, sem que saia lá para fora, também assim prefere Cosme do que a perspectiva de assistir na primeira fila a um compadre possesso que só Deus sabe o que pode fazer caso o rapaz não tenha abano. Obrigado pela visita meu caro conde e não se esqueça do nosso acordo. Podia lá eu fazê-lo compadre. Acordo de cavalheiros é lei. Selam a conversa com um sólido cumprimento de mão, já se vê ao fundo, a sair da copa, o mordomo com o casaco mais enxuto e o chapéu mais seco do conde e ainda um chapéu-de--chuva para se abrigar até ao carro. A propósito, nem as vi e tão menos perguntei por elas. Perdoe-me a falta de lembrança, mas foi da emoção do nascimento, desculpa-se o conde com floreadas palavras. Ora essa, caríssimo, sei bem que pensou nelas. Estão muito bem, mas dado o avançado da hora encontram-se recolhidas nos seus aposentos. E como vão os seus? Muito bem meu coronel. Prometo passar cá no fim-de-semana para ver o seu novo rebento e para ver suas filhas. Trarei o Luís Filipe também para conhecer a Josefina. É bom que comecem a conviver.
Assim seja meu caro conde. Combinado. Traga meu futuro genro para ver sua nora. Imagino que deve estar grande. Que idade tem ela agora?' Tem treze quase nos catorze. E entregou o mordomo o casaco enxuto e o chapéu mais seco ao conde e palavra puxa palavra, mais verbais floreados, terminada a etiqueta da praxe, entre cavalheiros obrigatória, leva Alfredo o conde ao carro, um de fora e outro debaixo do chapéu-de-chuva, privilégios de uma cabeça real e nunca da serviçal que apenas segura o objecto de abrigo. Dentro do solar, já o coronel avança com passos firmes ao quarto de  Margarida nada preocupado com o tempo que faz lá fora porque outro não faz há seis meses, e menos ainda com quem se molha seja de real ou serviçal sangue, outros pensamentos povoam a mente superior deste patriota e para menos não é ou não fosse tão gigante o desejo de ver um varão do clã Silveira entrar na Escola Militar da nobre capital do nosso país e do nosso imenso Império. Está quase a chegar o coronel ao quarto de Margarida e seu também, mas outra porta se abre em frente, a do quarto das meninas, a do quarto das quatro meninas e de lá alguém espreita e não é senão a mais velha, Josefina se bem se lembram, que avista o pai, que mais não é senão um homem para ela, o seu pai, o seu querido pai, porque nada percebe de fronteiras e defesas e muito menos de patentes e hierarquias militares, corre para ele Josefina.
Já nasceu pai? Já nasceu a minha irmã? Mas será irmã ou irmão? Eu quero irmã. Não quero cá nenhum irmão. Bom, amanhã verás. Já devias estar a dormir como as tuas irmãs. Irei, mas quero o meu beijo, estou à espera dele para adormecer. E curva-se o coronel José Silveira, altamente condecorado pelos mais altos galardões nacionais, pega em Josefina e dá-lhe um beijo na face, pieguices a que ela se habitou e não deslarga ou não fosse em feitio igual ao pai, seja feita a sua vontade e em vez de um beijo leva dois e amanhã de manhã há mais ao acordar, vá agora a menina dormir que o pai ainda tem que fazer, fecha a porta a pequena e abre a outra o coronel, a do seu quarto e entra, ainda lá está Inácia que pousa o rebento na alcofa e cumprimenta o coronel, despede-se de Margarida e sai lesta que aquilo não é com ela, maldito seja este homem, pensa, mas não o diz, medo tem também do coronel. Com licença coronel, boa noite. Bate a porta Inácia e ala que já se faz tarde, tem o Domingos à espera e que chuva que se ouve lá fora, não há meio de desanuviar, meu Deus.
Dentro do quarto já era de esperar mais molestas, mas ainda não se ouve nada, deixemos de coscuvilhices saloias e entremos a ver o que lá se passa, nada podemos fazer para acudir a Margarida, a não ser testemunhar para que nunca mais se repita, senão na casa do coronel e nas outras milhares que por aí povoam a Nação e o Império. Ainda está o coronel a mirar a alcofa, o rebento na alcofa, já sabe que não foi atendido pela quinta vez consecutiva, se é que se pode falar nestes modos, mas a sobrepor-se à raiva o mesmo aperto, aquele aperto estranho toma-lhe o coração, a menina olha-o nos olhos, um olhar superior de quem controla, de quem ordena, de quem comanda, o filho que o coronel tão deseja é menina, mas ele não se importa como das outras vezes, uma lágrima acorre-lhe ao olho e desce pela face até se perder pela barba, Margarida ficaria boquiaberta se o visse nestes modos, mas ele está de costas e ela só aguarda pelo que a espera e todos nós para falar verdade, nunca com nenhuma das suas quatro filhas sentiu o que sente agora, uma alegria intensa, uma vontade gigante de ser um bom pai, não que não o seja agora, perdoe-nos o nosso coronel, senão atenta-se, há poucos minutos, os beijos que deu à filha mais velha, Josefina, e muitos mais dará às suas filhas, cinco a partir de hoje e com muito orgulho, perdoemos os mais sádicos de nós que pancada esperam, mas nada disso vai acontecer ao que parece, paciência, melhores dias virão para esses». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de PlanetaE/JDACT