sexta-feira, 2 de maio de 2014

Confissões de Uma Freira Pagã. Romance histórico. Kate Horsley. «O cabelo dela, bem penteado, caía a direito em bandas lubrificadas da cor do casco de carvalho. Ela mantém os olhos sempre muito abertos como se estivesse com medo ou chocada, até mesmo quando os seus lábios trementes sorriem»

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Declaração
«(…)Estou aqui sentada há muito tempo com a pena poisada sobre o pergaminho e agora interrompo a minha própria história para descrever os acontecimentos que ocorrem no presente. Uma das irmãs mais antigas, Terrech, que é irmã de sangue da outra anciã, Luirrenn, morreu durante a tarde, quando a chuva caía grossa nas minhas costas estando eu a trabalhar no jardim. Fui chamada para me sentar ao lado dela aquando da seu último suspiro, mas já cheguei tarde demais. Mesmo assim, havia paz na sua expressão e os seus olhos tinham sido fechados pelo seu próprio esforço antes da morte. E então éramos dezoito, e uma nova freira, uma mulher estranha que tinha estado à espera no povoado que se aglomera adjacente ao convento, juntou-se à Ordem de Santa Brígida de modo a fazer-nos, novamente, dezanove. Ela é muito jovem, talvez tenha metade da minha idade, e tem feições sedosas e olhos grandes, da cor de um pano azul deixado muitos dias ao sol. Quando ela veio à porta, livrou-se das suas próprias roupas como se fossem feitas de espinhos e cardos. Nua, ela ajoelhou-se e beijou a mão de cada irmã, deixando os lábios permanecerem muito tempo sobre a nossa pele, que era muito mais grosseira do que a dela, devido ao nosso trabalho nos jardins e à volta das fogueiras. O cabelo dela, bem penteado, caía a direito em bandas lubrificadas da cor do casco de carvalho. Ela mantém os olhos sempre muito abertos como se estivesse com medo ou chocada, até mesmo quando os seus lábios trementes sorriem.
As outras freiras tocam a sua pele como que apalpando linho numa feira. Estávamos todas compelidas a fazermos de mãe dela, mas ela falava pouco e só em sussurros. Ela deixava cair a cabeça, parecendo envergonhada pelas palavras que a língua não deixava passar, ou envergonhada pelo defeito ou feitiço que tinha roubado a plenitude à sua fala. Ela é como um animal de estimação que nos veio de outro mundo. Há até concursos entre as freiras para ver quem é que fica sentada ao lado dela e quem lhe coloca o pão entre os lábios. Especula-se muito sobre esta nova irmã. Eu digo que ela é louca e, noutras circunstâncias, seria tratada como uma pobre tonta. Outros dizem que ela é filha de um chefe ou que ela é santa. Eu já vi os retratos de santos nos manuscritos e tenho observado que existe uma luz redonda que brilha atrás das cabeças deles, que eles efectuaram actos de transformação e que estão mortos. No caso desta nova freira, não existe nenhuma luz redonda à volta da sua cabeça, não ouvi falar de nada que ela tenha transformado e ela não está morta. Mas eu sou uma ignorante pecadora, ainda manchada pelos modos que me foram ensinados por uma túath de criadores de porcos.
Oiço-a agora, como a tenho ouvido todas as noites, segredando lá fora da minha clochan, de tal modo que ao princípio pensava que as próprias pedras me estavam a contar uma mensagem secreta. Depois fui lá fora, para a escuridão fria e, apesar do vento me ter tirado o capuz da cabeça e me ter mascarado a cara com o meu próprio cabelo, eu vi esta nova irmã a correr para dentro da sua clochan, que é vizinha da minha. Ela fala a algo que não consigo ver e acabo de ouvir um gemido vindo desse lugar, tão estranho que parece um berro simultaneamente de êxtase e terror. Questiono-me se deveria ir ver se ela não está magoada, ou tomada por vermes. Mas eu temo desviar-me do meu trabalho e procuro evitar qualquer loucura ou fraqueza que me afaste da minha escrita. Pois não temos nós toda a razão em escolher a fraqueza, e não é o nosso dever resistir-lhe, senão o mundo estaria cheio de almas em pranto, carregando fardos pesados? Já observei muitas vezes que os ricos, apesar de terem mais carne que os pobres, ainda são mais fracos.
Porque os pobres conseguem tecer fio do fuso, da luz rosácea à pardacenta, apesar das mãos lhes sangrarem com cortes, enquanto os ricos gritam logo por um médico. O nome dela é irmã, Aillenn. Eu acho que ela é de uma família nobre e que está habituada às mordomias de servos cativos a servirem travessas de carnes e queijos. Também acho que ela tem sonhos maus causados por corpan fedilfastt que juramos cumprir. De facto, a minha mãe disse que, à noite, num estômago vazio entram espíritos maléficos que levam a alma em aventuras desagradáveis, como se ela tivesse de lutar contra o vento que puxasse a capa de uma criança. Irei aconselhar a irmã Aillenn a desistir do seu sofrimento auto-infligido e arrogante e trazer algum tanagta para manter no clochan dela para a noite, como muitas de nós fazemos, para silenciar o estômago e prender os intestinos. Deus nos perdoe mas nós somos mulheres que gostamos mais de comida do que de fome. Muitas de nós viemos de túaths onde só um louco, ou um moribundo, é que rejeitariam um pedaço de queijo. Deus ajude a irmã Aillenn cujos gritos surgem novamente como um vento lúgubre, soprando através das pedras da minha clochan e fazendo vacilar a chama da minha vela. Estamos todas murchas porque chove há quatro dias e quatro noites». In Kate Horsley, Confessions of a Pagan Nun, Confissões de Uma Freira Pagã, Romance Histórico, Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-8605-18-8.

Cortesia Ésquilo/JDACT