«Uma das ideias mais comuns acerca dos Descobrimentos marítimos do
século XV é a de que as viagens desvaneceram velhos mitos e ideias enraizadas
sobre a existência de monstros e de criaturas fabulosas que alegadamente
habitariam no oceano desconhecido, nas terras a sul do cabo Bojador e na Ásia.
É comum falar-se do Mar Tenebroso
da crença nos seres mitológicos que o povoariam e, até, de um abismo oceânico
cujo receio impediria os Europeus de tentar passar o Bojador. Uma vez, mais
precisamente em 2010, aquando do Campeonato do Mundo de Futebol na África
do Sul, uma jornalista portuguesa chegou até, num directo televisivo, a
misturar Bojador, Boa Esperança e Camões, ao apontar para um rochedo e afirmar
que Bartolomeu Dias o teria confundido com o temível Adamastor, que aterrorizava
os navegantes. Misturada com estas ideias está ainda a noção de que a Índia e
as regiões asiáticas a oriente eram desconhecidas e que os Europeus estariam
convencidos de que eram habitadas por monstros e criaturas míticas. Há uma
tendência exagerada para realçar a ruptura entre o antes e o depois
das viagens de exploração do século XV, a vários níveis e em diversas
dimensões. Subsiste a ideia, herdada do Renascimento e da Idade Moderna europeia,
de atribuir aos homens da Idade Média (a própria designação de medieval mantém hoje uma nítida carga
pejorativa) todo um conjunto de atributos negativos, como superstição,
crendice, ignorância, extrema religiosidade, ausência de espírito crítico, em
oposição à curiosidade científica, racionalidade e desejo de conhecimento dos
séculos posteriores.
Na verdade, o percurso foi bem mais lento, feito de pequenos passos e avanços:
nem os homens dos séculos XIII e XIV eram exemplos acabados de nesciência
beata, nem os navegadores do século XVI rejeitavam por completo as superstições
e crendices que estavam enraizadas por toda a Europa. O conhecimento prático,
concreto e real do mundo e a sua divulgação foi gradual e, muitas vezes,
misturado com ideias antigas e desactualizadas. Ontem, como hoje, o peso da
tradição não pode ser descartado de um dia para o outro. É curioso verificar
como a mesma Europa que se entusiasmava e estava ávida de novas informações
sobre as terras descobertas pelos Portugueses continuava, no século XVI, a
divulgar, a produzir e a imprimir livros claramente desactualizados, cheios de erros
grosseiros e velhas cantilenas fabulosas. Nada que nos admire; afinal, no tempo
da chegada do robô Curiosity a Marte
e da descoberta de dois planetas que orbitam duas estrelas a 5 mil anos-luz da
Terra, a astrologia continua a ser muito popular e a cativar largas parcelas do
público.
Desde a Antiguidade que circulavam na Europa histórias sobre o que se
passava para além dos limites do mundo conhecido. Estes limites não eram
rígidos e claramente definidos; eram, pelo contrário, muito difusos. A ocidente
existia um vasto mar tempestuoso e desconhecido, do qual apenas emergiam ilhas
lendárias, perdidas e envoltas em brumas de magia e superstição. A sul e a
leste estava o mundo muçulmano, que formava uma espécie de barreira que circundava
a Europa cristã, mas, apesar do antagonismo político-religioso que existia entre
os dois blocos, as informações sobre o que existia mais além não deixavam de
circular. Parte do conhecimento geográfico herdado dos Gregos e Romanos
sobreviveu, aliás, por via dos autores árabes e persas. Contudo, esse
conhecimento estava também imbuído de erros e distorções: uma boa parte das
ideias fabulosas e dos seres maravilhosos que se supunha existirem no Oriente
distante não eram invenções medievais, mas herança dos autores antigos. Por
exemplo, as descrições de homens que se alimentavam de cheiros (astomi), ou só com um pé, que
servia de sombrinha para se protegerem do Sol, (monocoli), ou sem cabeça e com os olhos e boca no meio do
peito (blemmyae) ou, ainda,
com orelhas enormes com as quais se cobriam (panotti), provinham de autores clássicos como Megástenes,
Ctésias ou Plínio. Mesmo alguns viajantes medievais incluíram nos
seus relatos histórias fabulosas, como o célebre Marco Polo que, entre
outras referências bizarras, relata a existência de homens com cabeça de cão (cynocephali) nas ilhas Andaman,
no golfo de Bengala». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses
Descobriram a Austrália? A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-626-498-7.
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