domingo, 12 de outubro de 2014

A Mocidade de D. João V. Rebelo da Silva. «… grandioso hospital de Todos-os-Santos, pelo sítio aonde estão hoje S. Domingos e a Praça da Figueira. Depois, descobriu as estiradas canelas do irmão Tomé, a quem o zelo emprestava asas, para pedir as alvíssaras do resultado da demanda…»

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«(…) Frei João rondou de passeio a arcada até à escadaria do grandioso hospital de Todos-os-Santos, pelo sítio aonde estão hoje S. Domingos e a Praça da Figueira. Depois, quando voltava cismando, descobriu as estiradas canelas do irmão Tomé, a quem o zelo emprestava asas, para pedir as alvíssaras do resultado da demanda, que estava longe de supor perdida. Duas palavras agora para explicar a provisão, que tirava o sono ao padre procurador, e fazia da cara do Tomé a pública-forma de um miserere. O hospital de Todos-os-Santos era proprietário de alguns dos arcos do Rossio, e arrendava-os aos lojistas a dois mil-réis anuais cada arco. A Ordem de S. Domingos possuía os que ficavam do lado do adro e debaixo do dormitório de cima, e os frades contentaram-se por muito tempo com a metade do preço exigido pelo hospital. Corria isto em santa paz, quando, eleito novo provincial, este, contra o voto do seu definitório, levantou a renda, a ver se dava uma bofetada sem mão na soberba do vizinho. Ardeu Tróia! Os vendilhões gritaram aqui d’el-rei protestando sem pejo nem temor contra a lesão enorme, que lhes fazia pagar as culpas de terceiro.
Em tão melindrosas circunstâncias, o antecessor de frei João, chamado frei Crisóstomo Borrego, caiu na simplicidade de citar os refractários para arrendarem as tendas da parede, sob pena de dois mil-réis de multa. Não esperaram os vendilhões por segunda intimação; e requerendo vistoria do senado da Câmara, vieram pôr a feira diante da testada dos arcos. Daqui se originou a perdição dos frades. Com o auto de vistoria os belfurinheiros provaram que não ocupando terreno do convento lhe não deviam nada; e a demanda, muito feia desde o princípio, concluiu pela famosa provisão do desembargo, declarando as testadas dos arcos livres, e absolvendo os feirantes de arrendamento e aluguer pelas ocuparem. Ainda por cima o convento pagou as custas! Foi assim que os padres de S. Domingos deram os seus arcos de graça pelos quererem alugar muito caros. Quando frei João dos Remédios entrou a servir, estava muito mal figurado o negócio; tratou de lhe valer; mas já tarde. Pouco habituado a reveses, caiu-lhe este como um raio em cima da cabeça, e não o querendo imputar à notória injustiça da causa, preferiu atribuí-lo ao ódio e antiga rivalidade de S. Roque com S. Domingos, dos Jesuítas com os Pregadores. Se ele se enganava, não sabemos; mas que a provisão deu gosto aos padres da Companhia, é caso averiguado.
Desta opinião do procurador da comunidade nasciam as pesadas reflexões, que lhe ouvimos, a respeito dos filhos de S. Inácio, vizinhos e inimigos da ordem inquisitorial. O padre-mestre Remédios ainda estava informando Tomé do sucedido, e o nosso andador, moralizando o caso com o notável adágio ninguém diga: eu desta água não beberei, quando um homem, escapando pelas costas do domínio e do seu acólito, ainda no maior calor da conversação, passou por eles como sombra, e foi coser-se com a pilastra do primeiro arco, depois de observar os oradores. O chapéu de abas largas e copa baixa era um chapéu de jesuíta, e, carregado na testa, encobria-lhe a parte superior do rosto. A capa de pano preto, embuçada, escondia-lhe a barba e todo o corpo. Donde se colocou podia ver e ouvir perfeitamente. Um quarto de hora depois, outro homem, atravessando do palácio do duque de Cadaval, entrou na igreja, e feitas as suas devoções, tomou água benta, e veio para o adro assentar-se no poial da cruz, defronte da portaria. Ali, cofiando uma cabeleira mal empoada e de cachos à antiga, pôs o chapéu de lado sobre a copa, arregaçou os punhos de Holanda encardidos, afinou o laço da gravata, e sacou por fim do bolso da esbeiçada casaca de tafetá um tinteiro de chifre e um coto de pena. Depois, montando o joelho direito sobre o esquerdo, principiou a rabiscar em um papel com o maior sossego do mundo. Assim dispostas as figuras, sucedia que o sábio teólogo tinha nas suas costas o homem embuçado, e que o andador das almas cobria com a longa pessoa o risonho escrevente; tudo isto decerto sem nenhum deles se ter ajustado, nem o pensar, à excepção do jesuíta. Esse provavelmente sabia por que razão viera ali.

Vale mais só, que mal acompanhado
Depois do episódio da esmola o padre procurador e o devoto acólito ficaram calados, um defronte do outro, por alguns instantes. As sobrancelhas de Tomé das Chagas ora subiam à raiz do cabelo, ora baixavam a tocar nas capelas dos olhos, o que significava que esta honrada pessoa, reflectindo no caso, não percebia, e desejava perceber. Frei João cismava carregando as rugas frontais, e dobrando os polegares. Era o seu gesto usual quando compunha. Afinal o andador arremeteu com as dúvidas, expeliu da garganta o pigarro matutino, e com a vozinha arrastada como preguiça do Brasil, continuou o diálogo interrompido pela jaculatória às almas. Com que, disse em tom insinuante, vossa reverendíssima julga que o papel não tem cura, e é obra… Dos hereges, dos cristãos-novos, dos inimigos de Deus e da sua glória. Digo, creio e afirmo, irmão Tomé, respondeu frei João, irado». In Luís Augusto Rebelo da Silva, A Mocidade de D. João V, Biblioteca Iniciação Literária, 73, volume I, Livraria Chardron de Lello & Irmão Editores Porto, 1852.

Cortesia de Lello & Irmão/JDACT