(Excerto)
[...] O Desafio Venturoso insere-se no
grande grupo da novela curta amatória que, embora de origem italiana, no
período barroco tinha já uma arreigada tradição peninsular. Segundo Menendez y
Pelayo esse género remontaria a meados do século XV florescendo ao lado das novelas
de cavalaria mas diferindo destas consideravelmente, pois na novela
erótico-sentimental dá-se mucha más
importancia al amor que al esfuerzo, sin que por eso falten en ella lances de
armas, bizarrias y gentilezas caballerescas, subordinadas aquella pasion que es
alma y vida de la obra, complaciendose los autores en seguir su desarollo ideal
y hacer descripción de los afectos de sus personajes. Es, pues, una tentativa de novela intima y no meramente exterior como
casi todas las que hasta entonces se habian compuesto. Esta descrição
aplica-se com bastante acerto ao Desafio Venturoso, novela curta
amatória em que não faltam rasgos cavalheirescos ao lado da anatomia dos
sentimentos das personagens. Não sendo propriamente uma narrativa exemplar, o Desafio
Venturoso está próximo das novelas cervantinas, exibindo claramente,
para lá de vestígios dessa poderosa tendência, aquilo que Evangelina Rodriguez
Cuadros definiu como la dolorosa escisión
barroca entre lo intelectual y lo sensible.
Considerando o seu argumento, veremos que Felício, amante (que
se julga) traído por Lizarda, ao ter conhecimento da dimensão da sua
desdita através do relato de Carlos (que ele salva da morte e de quem se torna
amigo), acaba por ficar num impasse afectivo, dividido entre as leis do amor e
as da amizade, não conseguindo resolver satisfatoriamente o conflito que se
gera no seu íntimo. A solução para o problema do triângulo amoroso que se desenha
entre Felício, Carlos e Lizarda, é encontrada por um processo frequente em novelas
cervantinas, e que consiste na transformação do triângulo conflitual em
quadrângulo de equilíbrio, pela adição de mais um elemento feminino (neste
caso, Ângela, irmã de Lizarda), terminando a novela com o desejado desfecho
feliz através da formação de dois casais.
No Desafio Venturoso é também muito
evidente a presença do que Evangelina Rodriguez Cuadros classificou como a
dupla articulação do aspecto individual/passional como aspecto de vinculação social,
muito nítido no desenho das figuras: veja-se
que as acções nobres são praticadas pelos senhores e as acções vis emanam da criada
Lucinda. São ainda de destacar os aspectos de amor não-platónico, não-petrarquista,
em relação à personagem principal feminina. Esta, por seu turno, fazendo eco
dum costume frequente na época, quer nas novelas exemplares quer nas pastoris (em
episódios intercalados), assume uma atitude varonil e até de índole criminal,
pois Lizarda (se bem que para defender a sua honra) não só apunhala
barbaramente Carlos, deixando-o a esvair-se em sangue, como ainda, mais tarde, disfarçada
de cavaleiro, brande valorosamente a espada num duelo em que de novo põe em
risco a vida do infeliz jovem.
O comportamento vil da criada, fulcro do engano à volta do
qual gira toda a acção da novela, é eficazmente contrastado com o gesto
impiedoso de Félix, pai de Lizarda, que ameaça matar Lucinda, castigo
justificado pelo ultraje feito à sua honra. Porém o autor, que obviamente explora
a situação para intensificar o cunho melodramático da narrativa, resolve a
questão duma maneira elegante e caridosa, fazendo com que tanto os jovens
amantes como o ofendido pai, concedam a Lucinda o seu perdão.
Dotada dum enredo que se deseja intenso e dramático, mas que
não exclui os acentos líricos, esta novela em que os sentimentos e os actos estão
em íntima consonância com o cenário natural, violento e dramático na serra
da Estrela, idílico na serra de Sintra, possui um acentuado sabor
romântico, embora datando de cerca de um século antes do próprio pré-romantismo
se ter afirmado. Por outro lado, se no Desafio Venturoso há um clima de
grande tensão passional, que só no fim da novela se resolve, a linguagem usada
é bastante comedida, encontrando-se o empolamento mais na efabulação do que no
discurso. De assinalar ainda é a presença de poemas intercalados, em português
e em castelhano, segundo o costume da época, de que destacaremos pela sua
particular qualidade o Soneto do folio 142v. Dentro do restrito panorama da
novela barroca portuguesa, que agora começa aos poucos a ser descoberta, o Desafio
Venturoso surge como uma narrativa bem urdida e bem trabalhada, que merece
um lugar de destaque na ficção portuguesa de todos os tempos». In Ana
Hatherly, O Desafio Venturoso, António Barbosa Bacelar, Lisboa, Assírio Alvim,
1991, Narrativa de Ficção, Memoralismo e Costumes, Prosa Moralista e Humorista,
FCG, Século XVII, HALP, 2005, ISSN 1645-5169.
Cortesia de FCG/JDACT