Orpheu
e Depois
«O apocalipse de 1914-1918
trouxe à Europa o começo da sua decadência e, a alguns dos seus espíritos mais privilegiados,
a lúcida consciência dela: Nós-outras, civilizações,
sabemos agora que somos mortais, ecoará Valéry, numa das suas
proclamações emblematicamente inquietantes. O ano de 1914 terá sido o começo de uma sombria viragem para o mundo
ocidental. Para nós, portugueses, foi a véspera do começo de um período literário
que ainda não acabou de terminar: o modernismo.
Filhos perturbados e fascinados de Orpheu
e de um Fernando Pessoa sorrindo eternamente em itálico, é o que ainda
hoje, em parte, somos todos nós ou, pelo menos, os melhores de nós. Dissemos: viragem;
e seria este um termo adequado, se a erosão do uso lhe não tivesse, por demais,
embotado as arestas. O Orpheu
foi mais do que uma viragem: foi um abalo sísmico de uma tal intensidade e
fulgor, que ainda hoje se lhe sentem os efeitos. O Orpheu foi mais (ou outra coisa) do que uma
simples aventura literária, ainda que intensa e traumática: foi um modo de
viver e de morrer (morreu-se muito e depressa, como não mandou o rei Sebastião
I, entre os homens do Orpheu),
foi um investimento total de um grupo de homens que ousaram ousar, uma missão
impossível, um apocalíptico sondar ontológico (Eduardo Lourenço), uma
dança da morte no fio acerado duma corda tensa, uma apropriação sistemática do
paradoxo como método de apreensão do real mais fundo: se queres ser profundo, dirá um pouco mais tarde o presencista José
Bacelar, herdeiro do Orpheu,
aprende a pensar à beira do paradoxo.
Os homens do Orpheu foram
revolucionários, no sentido em que Gauguin, com tanta finura quanta
injustiça, dizia: em arte só há revolucionários
e plagiários. Não é verdade, mas ilumina.
O massacre metódico de toda uma
juventude nas trincheiras europeias (reparai neste absurdo: uma guerra parada,
uma matança imóvel!), o recuo da razão, o triunfo fácil e sumptuoso das
forças de violência e morte, a traição, à última hora, dos próprios partidos
socialistas europeus, trouxeram, como consequência, a morte da fé nos deuses
que, pouco antes, triunfavam: a
ciência, a razão e o progresso. Os velhos maîtres à penser esboroavam-se ao rés do desespero de quem antes os
tinha venerado. Essa juventude
perguntava um escritor francês, que
tinha ela em 1914-1918? E respondia: um Claudel que construía um
novo génio do Cristianismo para eles, que tinham deixado de acreditar; um
Barrès, grande comediante que se tinha tomado a si próprio demasiado a
sério; um Bourget, que vigiava, como médico, os progressos da doença
cerebral do século e nada construía; mestres que não passavam de piões
coca-bichinhos e fastidiosos. O que ela (a juventude) pedia, antes de
mais nada, era um objectivo que as forças dadas à sua inteligência aceitassem;
na falta desse objectivo, um emprego lúcido da sua vida. A ciência, de que
tanto se esperava! A ciência, amiga e promotora do homem... Se ela, como tudo o
resto, falira, ajudando a construir a
técnica mas não sendo capaz de construir,
paralelamente, um homem moralmente apetrechado para manipulá-la sem perigo de
auto-destruição, se ela, portanto, falira, num mundo que ruía, o anátema dos
herdeiros desiludidos e desapossados não iria poupá-la: amaldiçoo a ciência, essa irmã gémea do trabalho, proclamará o
surrealista Aragon: Conhecer! Desceste tu
jamais ao fundo desse poço negro? Que encontraste lá, que galeria na
direcção do céu? Pois bem, só te desejo um jacto de grisú que te restitua
finalmente à preguiça, que é a única pátria do verdadeiro pensamento...
Ao
recuo da razão responderão os homens traídos, empunhando as forças do
irracional e do subconsciente: … os
homens estão sempre contra a razão, quando a razão está contra eles, dizia
Helvetius. Álvaro de Campos, heterónimo de Pessoa, reflectirá a mesma
desilusão, em termos de eloquente rejeição: mandato de despejo aos mandarins da Europa! Fora. Fora tu, Anatole
France, Epicuro de farmacopeia homeopática, ténia, Jaurés do Ancien Régime,
salada de Renan-Flaubert em louça do século XVII, falsificada! Fora tu, Maurice
Barrès, feminista da acção, Chateaubriand de paredes nuas, alcoviteiro de palco
da pátria de cartaz, bolor da Lorena, algibebe dos mortos dos outros, vestindo
do seu comércio! O frenesi e a palhaçada são quase sempre máscaras de um
abalo profundo e sincero. A paródia serve para esconder a fundura do golpe e
disfarçar, com pudor, o pathos. São jogos, dirá mais tarde José
Régio (um profissional no exercício exímio do cache-cache), mas são jogos sérios e mortíferos de Édipo com a
Esfinge». In Eugénio Lisboa, O Segundo Modernismo em Portugal, Biblioteca Breve, Volume 9, Instituto
Camões, Livraria Bertrand, Lisboa, 1984.
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