O
drama do intelectual
«(…)
Suscita o seu aparecimento, morrerá contente se sentir galopar por cima e para
além do seu corpo uma forte, decidida e esclarecida mocidade. Não abafa nos
seus concidadãos o que eles têm de bom, desenvolve, carinhoso e enérgico, as
ásperas virtudes, as rijas possibilidades que os lancem com passo de vitória no
caminho do futuro. Quer na gratidão uma secura espartana, para que se não possa
confundir com a adulação a Pisístrato. E o seu drama começa na altura em
que nele buscam mais a autoridade do que a razão». In Diário de Alcestes
O
verdadeiro intelectual
Não
há nenhuma vida verdadeiramente intelectual em que a polémica não seja um
acidente, um desnível entre o engenho e a cultura adquirida, por um lado, e,
por outro, o meio ambiente; o pensador não é, por estrutura, polemista, embora
não fuja ante a polémica, nem a considere inferior; o seu domínio é no campo da
paz, não entre os instrumentos de guerra; quando a batalha se oferece sabe,
como o filósofo antigo, marchar com a calma e a severa repressão dos instintos
que o mundo inteiro, ante a sua profissão, tem o direito de exigir; o seu dever
de cidadão impõe-lhe que tome, ao ecoar da voz bárbara, a lança que defende as
oliveiras sagradas e os rítmicos templos. A sua linha, porém, o fio de cumeadas
por que se alongam os seus passos melhores comportam apenas uma invenção
superadora, um perpétuo oferecer aos seus amigos humanos de toda a descoberta
possibilidade de um caminho mais belo e mais nobre.
Vê-se
como um guia e um observador de horizontes que se estendam para além dos
limites do mar e dos limites do céu; a sua missão é a de pôr ao alcance de
todos o que novamente contemplaram os seus olhos e de os ajudar a percorrer a
estrada que abriu ou desvendou; com toda a humildade, todo o carinho que provêm
de ter medido a imensa distância que ainda o separa de Deus e de ter
aprofundado a tristeza e a treva em que se debatem e se amesquinham seus
irmãos; inteligência e caridade não andam longe uma da outra quando são ambas
verdadeiras». In Considerações
Liberdade.
A fé dos homens é ainda na liberdade
«Neste
tempo em que estamos, outro nome para nós devem tomar a Beleza e o Amor
que Deus é, e o nome que devemos fundir numa Trindade agora plenamente vista é o de liberdade.
Apesar do sistema económico que não deixa que os homens aproveitem pleno e
rápido o que o génio lhes inventa, embora seja o génio em grande parte incitado
a fazê-lo pelo próprio sistema económico, ou pela concorrência em que ele se
baseia; apesar de vermos num mundo tão cioso de seu cristianismo que se
continua a queimar comida para que os preços não desçam, e isto mesmo num
Mercado Comum Europeu de que tantos tão facilmente se enamoram; apesar de
homens serem conservados no desemprego, com a fome ou a humilhação do socorro
estatal, apenas porque tal convém ao lucro; apesar de que noutra metade do
mundo a saída do subdesenvolvimento se esteja processando em regimes que não
põem nos meios que empregam a concordância com os fins, isto é, que são
repressivos quando têm por ideal a total abolição de autocracias; apesar de se
estar caminhando, mesmo nos países que mais livres pareciam, para formas de
repressão em que o homem se esmaga; apesar do pouquíssimo respeito que se demonstra
pelos direitos do indivíduo ou das nações; apesar de toda a noite que afigura
estar descendo sobre o mundo; a fé dos homens é ainda na liberdade, a pressão
sobre a economia é ainda a da liberdade, a limitação aos governos, tão
predispostos ao abuso, é ainda a da liberdade; e, na palavra ou no silêncio, mesmo
nos mais embrutecidos por qualquer lado das guerras, mesmo nos mais afastados
de um pensar coerente, a ideia dominante é a de que querem viver suas vidas
próprias na liberdade e na paz». In Agostinho da Silva, Citações e
Pensamentos, O Homem não Nasceu para Trabalhar, Nasceu para Criar, Casa das
Letras, Alfragide, 2009, ISBN 978-972-46-1922-4.
Cortesia
de Casa das Letras/JDACT