O Guardador de rebanhos
[…]
«Quando eu morrer, filhinho,
seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo e leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
e deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde
para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
até que nasça qualquer dia
que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
não há-de ser ela mais verdadeira
que tudo quanto os filósofos pensam
e tudo quanto as religiões ensinam?
IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
e os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
e com as mãos e os pés
e com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
e comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
me sinto triste de gozá-lo tanto,
e me deito ao comprido na erva,
e fecho os olhos quentes,
sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
sei a verdade e sou feliz.
X
Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
que te diz o vento que passa?
Que é vento, e que passa,
e que já passou antes,
e que passará depois.
E a ti o que te diz?
Muita coisa mais do que isso,
fala-me de muitas outras coisas.
De memórias e de saudades
e de coisas que nunca foram.
Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
e a mentira está em ti.
XI
Aquela senhora tem um piano
que é agradável mas não é o correr dos rios
nem o murmúrio que as árvores fazem...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
e amar a Natureza.
XII
Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras coisas
e cantavam de amor literariamente.
Depois - eu nunca li Virgílio.
Fara que o havia eu de ler?
Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Natureza é bela e antiga».
[…]
Parte do Poema de Alberto Caeiro
(Fernando
Pessoa), in ‘Poesias’
ISBN 978-972-617-195-9
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