sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Agostinho da Silva. Pensamentos. Reflexões. «… o saber é puramente exterior e muito mais fácil de adquirir do que em geral se supõe. O político que se apresenta com as minhas ideias políticas, o filósofo que se apresenta com as minhas ideias filosóficas (palavras de Alcestes), o pedagogo que se apresenta com as minhas ideias pedagógicas»

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O homem de ideias
«Não é lícito dizer que tem ideias aquele que as foi buscar a outro, que envergou um sistema já pronto, que não o construiu ele mesmo a pouco e pouco, à medida que se ia alargando e aprofundando a sua visão do mundo; para ter ideias é necessário um trabalho de autoformação, de modelação contínua da alma, uma assimilação que não cessa de tudo o que uma determinada personalidade encontra de assimilável no que a cerca, ou passado ou presente; a ideia surge da vida própria e não da vida dos outros; o homem que tem individualidade (é muito difícil ser indivíduo), ou a busca, pode inserir no seu pensamento fragmentos de pensamento alheio, mas apenas insere aqueles que, como algarismos num número, mudam de valor conforme a posição; inventa uma coluna vertebral que só a ele pertence e caracteriza, depois procura o que se lhe pode adaptar sem desarmonia nem contradição.
Faz como o caracol que se não instala na concha de outro caracol; fabrica-a e aumenta-a ao mesmo ritmo que se fabrica e aumenta o corpo que a enche; os eremitas são bichos traiçoeiros. Aprender ideias não tem valor senão quando nos serve para formar ideias; se apenas as queremos usar não merecemos nem a confiança nem a consideração de ninguém; o saber é puramente exterior e muito mais fácil de adquirir do que em geral se supõe. O político que se apresenta com as minhas ideias políticas, o filósofo que se apresenta com as minhas ideias filosóficas (palavras de Alcestes), o pedagogo que se apresenta com as minhas ideias pedagógicas, mas que reconheço não terem nem a minha política, nem a minha filosofia, nem a minha pedagogia, não têm, na verdade, as mesmas ideias; usam-nas somente; são como actores a quem tivesse emprestado os meus fatos e que jamais confundirei comigo; decerto não subirei ao palco para lhes entregar o meu país, ou a direcção da minha vida, ou a educação de um moço; posso ainda admirá-los se representarem bem: mas sei o significado primitivo de hipócrita». In Glossas

O drama do intelectual
«O intelectual, aquele que representa na Humanidade o que ela tem de realmente humano, gosta mais de quem dele se afasta do que de quem segue sem condições, disposto a transformar a doutrina que ouve numa ortodoxia opressora; como se sente diminuído nos ambientes de serralho, anseia pelo que lhe ofereça ocasião de jogo e se constitua adversário. O campo em frente da sua tenda está aberto a todos os campeões amigos de justar e quebrar lanças». In Agostinho da Silva, Citações e Pensamentos, O Homem não Nasceu para Trabalhar, Nasceu para Criar, Casa das Letras, Alfragide, 2009, ISBN 978-972-46-1922-4.

Cortesia de Casa das Letras/JDACT