sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Eleonor na Serra de Pascoaes. António Cândido Franco. «A poesia portuguesa, tem sido lida apenas numa horizontalidade acessível e chã, mostrando a crítica actual incapacidade em aprofundar aspectos que representam uma verdadeira face oculta ou sombria da nossa melhor poesia»

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«(…) O problema do desconhecimento da poesia de Teixeira de Pascoaes é pois de outra ordem e prende-se talvez em primeiro lugar com a inadequação dos nossos próprios instrumentos de leitura. Há duas fontes a que geralmente a interpretação literária recorre: as fontes exotéricas, que são as mais conhecidas e acessíveis, e que intentam no melhor dos casos uma explicação da obra; e as fontes esotéricas que requerem um saber operativo e intentam por seu lado a sua compreensão. As fontes exotéricas contribuem, por tudo aquilo que ajudam a simplificar, para a divulgação da obra, enquanto as fontes esotéricas, por tudo aquilo que complexificam, dão à obra um sentido outro, geralmente desconhecido, descobrindo-lhe uma interioridade oculta que se aprofunda e alteia sem se esgotar. Eu creio que a interpretação literária em Portugal se tem ressentido demasiado, sobretudo nos últimos sessenta anos, que tantos são os que passaram desde o fim da Renascença Portuguesa, do uso e do abuso das fontes exotéricas e consequentemente da falta de um saber operativo, capaz de dar à obra toda a sua interioridade infinita. A poesia portuguesa, quer antiga quer moderna, tem sido lida apenas numa horizontalidade acessível e chã, mostrando a crítica actual notável incapacidade em aprofundar todos aqueles aspectos que representam uma verdadeira face oculta ou sombria da nossa melhor poesia.
Por muito úteis que cultural e socialmente as fontes exotéricas se possam mostrar, elas nunca poderão ambicionar à exclusividade da prática interpretativa, como em certa altura parecem ter pretendido, pois isso seria o mesmo que pretender que o melhor da nossa poesia se podia esgotar em simples vulgarizações, de tipo sociológico ou outro. A verdadeira interioridade poética, que dá em simultâneo voz e dificuldade à obra, só pode ser revelada (e entendida) por uma outra prática interpretativa que passa da explicação divulgadora à compreensão futurante. Neste sentido, a leitura das duas frases de José Marinho destina-se em primeiro lugar a ser meditada pelos intérpretes não na sua relação com a poesia, mas na sua relação com os seus próprios instrumentos de interpretação. Acreditamos que as frases de Marinho apelam a qualquer coisa mais que ao simples discurso de promoção editorial, tão em voga hoje quando se fala de crítica literária. Conhecer a nossa poesia não pode ser falar simplesmente dela. Se assim se lerem as frases de Marinho, já muito do que outrora se escreveu sobre Camões e hoje se escreve sobre Fernando Pessoa perde o seu interesse, pois tudo o que fez e faz é reduzir a poesia de Camões àquele camonismo oficial de que fala António Telmo, e que é a sua poesia traduzida em dois ou três lugares estafados (anti-islamismo, defesa dos descobrimentos na sua versão oficial, ortodoxia religiosa), e a de Pessoa a um conjunto de superficialidades.
Começar a compreender a poesia de Pascoaes não é pois, em meu entender, começar a falar muito dela, mas antes encontrar o verdadeiro modo de falar dela. As frases de Marinho destinam-se mais a confrontar o intérprete com os seus próprios meios, que carecem geralmente de alcance, que propriamente a confrontá-lo com os autores ignorados da nossa literatura. Tivesse a interpretação literária do século XX português seguido na esteira do Sampaio Bruno da Geração Nova, do Fernando Pessoa de A Nova Poesia Portuguesa ou do Teixeira Rego de Estudos e Controvérsias e teríamos hoje um panorama bem diferente daquele que temos, em que se ignora praticamente tudo o que verdadeiramente importa da nossa poesia. O fim, pelo menos aparente, da Renascença Portuguesa e a dissolução de uma verdadeira república de pensadores veio definitivamente deitar por terra durante muitos anos a possibilidade de um trabalho colectivo em profundidade sobre a nossa poesia e a nossa literatura. Livros tão ricos de ensinamentos, nos domínios da exegese e da hermenêutica literárias, como aqueles que acima apontámos ficaram durante muito tempo no esquecimento, sem qualquer continuidade». In António Cândido Franco, Eleonor na Serra de Pascoaes, Edições Átrio, Lisboa, Colecção o Chão do Touro, 1992, ISBN-972-599-042-0.

Cortesia de Átrio/JDACT