Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade. Contextos
sociais e políticos
«As profundas transformações das estruturas produtivas que
começaram a ser desenhadas na Europa ainda nos finais da Idade Média, num cenário
de recessão económica generalizada, penalizaram sobretudo os mais frágeis, que
acorreram aos centros urbanos, à procura de trabalho, assistência ou esmola, agravando
as dificuldades que também por lá se faziam sentir. Além das guerras, as
epidemias, parte integrante do ciclo recessivo desencadeado em meados do século
XIV, e presença recorrente desde a Peste Negra, desorganizavam a vida dos
locais afectados, às vezes por longos períodos, e davam uma outra dimensão aos
problemas económicos e sociais, mobilizando as autoridades para encontrar soluções
para os enfrentar. Em Itália, as urbes que primeiro se depararam com a peste
foram as mais céleres a desenvolver os mecanismos para a combater, uma acção
que acabou por franquear as portas a novos grupos sociais, dando-lhes a sua
oportunidade política. Na maioria dos casos, foram as autoridades locais que
avançaram para a criação de esquemas sanitários inovadores, desenvolvidos à
volta dos Conselhos de Saúde, suportados por uma burocracia já com algum grau
de complexidade, que depois seriam adoptados em Inglaterra, França, Espanha e
também em Portugal. Nestes países, porém, a primazia da condução das novas
políticas de saúde pública pertencia à Coroa, ainda que a sua implementação
fosse da responsabilidade dos municípios. O medo da disseminação das epidemias,
num tempo de fortíssimas migrações, especialmente perturbadoras quando migrações de pobreza, legitimava a
intervenção dos governos centrais, fornecendo-lhes argumentos para exercer um maior
controlo sobre o território e os seus habitantes, procurando evitar o desenraizamento
das populações, elemento limitador da arrecadação tributária e da incorporação
militar, suportes do Estado que então emergia.
Em Portugal, o combate às epidemias foi assumido de forma
inequívoca por Manuel I como um assunto do poder central. Partindo das
disposições de 1471, foi este mesmo
monarca quem, para enfrentar a peste que tão
amiúde visitava Lisboa, instigou a câmara municipal a investir no
desenvolvimento de um pelouro de serviço sanitário, impondo-lhe o estabelecimento
de mecanismos de prevenção, contra a resistência dos vereadores, mais
preocupados com os reflexos económicos das restrições do que com planeamentos a
médio prazo. Foi também Manuel I que, em 1510,
quis transformar em estruturas permanentes as Casas da Saúde que se estabeleciam em Lisboa cada vez que deflagrava
um surto pestífero e, findo este, se desactivavam, lançando um projecto de um
grande hospital, enviado ao município em 23 de Julho de 1520. Planeado (como vereis pela pintura de tudo) para 160 camas, além de oficinas
e de outras casas necessárias, o novo
hospital deveria ser construído em Alcântara, junto ao rio, por ser
local afastado da cidade e também porque
ali há muita água e lugar para os enterramentos e mais facilmente lá
chegarem os materiais de construção. Orçamentado em cinco milhões de réis, o
monarca propôs-se oferecer um milhão de réis, obrigando a câmara a idêntica
comparticipação e a cobrar o restante à população, através de tributação
extraordinária. Este encargo não deveria excluir ninguém, nem mesmo os
tradicionalmente privilegiados e isentos do pagamento de impostos, dada a utilidade
pública do empreendimento por esta coisa
nos parecer tão necessária e proveitosa para toda a saúde dessa cidade e ainda
de todo o reino.
A morte do rei, em Dezembro de 1521, viria a ditar o abandono dos planos para o hospital dos
pestilentos, reflectindo as dificuldades da Coroa em manter as estratégias
delineadas, o que não significou, porém, uma inversão do rumo traçado. Como concluiu
Maria Pimenta Ferro, quando analisou as políticas de saúde pública medievais, ao contrário das outras formas de assistência
onde os particulares primavam, aqui, na assistência aos pestilentos, notava-se
já a acção directa dos municípios e dos soberanos. Era a estes dois poderes que
competia gerir a saúde pública, que nada tinha que ver com a caridade, a qual
fora até aos finais do século XV a grande base da assistência aos pobres. Era
este o cenário à entrada de Quinhentos, mas os municípios tinham deixado de
poder actuar de forma autónoma, e assim se conservariam pelo menos até 1804. Não era muito diferente o que se
estava a passar com a regulação das profissões ligadas às artes curativas, reforma dos hospitais, apoio às crianças
abandonadas e organização dos mecanismos de auxílio formal aos presos e aos
pobres, subjacente na criação das misericórdias, áreas cuja tutela a Coroa
chamava a si». In Laurinda Abreu, O Poder e os Pobres, As Dinâmicas Políticas e
Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal, Séculos XVI-XVIII, Gradiva,
Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.
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