terça-feira, 21 de outubro de 2014

República e Republicanismo. Maria C. Proença e Luís Farinha. «Para os republicanos históricos da ‘Geração de 90’ e também para a nova geração de 1910, intransigente e rebelde, a República era a sua “Dulcineia”. Com a sua implantação ambicionavam tudo: o início de uma profunda reorganização que deveria modificar de alto a baixo toda a arcaica sociedade portuguesa»

Primeira República Portuguesa, 5 de Outubro (uma criança)
Cortesia de wikipedia

A Ideia e os símbolos
«Um século depois do 5 de Outubro e mais de oito décadas após a sua queda, a Primeira República é ainda hoje memorada pela revolução política que lhe deu origem e pelas vicissitudes de um regime instável que, de solução, se tornou ele próprio, com o decorrer do tempo, num problema a resolver. Contudo, a República e o Republicanismo foram, antes de regime, um movimento cultural regenerador que, para além da mudança do sistema monárquico, pugnava pela democratização da sociedade portuguesa, pela laicização das instituições e das consciências e pela modernização económica e social do país. Constituiu-se como movimento em meados do século XIX, depois do afloramento revolucionário de 1848, instituiu-se como partido com a finalidade de disputar o poder político a partir da década de 80, falhou o golpe revolucionário em 31 de Janeiro de 1891, reforçou o seu compromisso histórico interclassista no modo ordeiro como disputou as eleições parlamentares e municipais e, sustentado por um bloco histórico vasto e diversificado, preparou a transição revolucionária de 1910 a partir do Congresso de Setúbal do ano anterior. A crise política e financeira de finais de século XIX, o arcaísmo sócioeconómico e cultural do país e a sua dependência externa encarregaram o Partido Republicano (as classes médias urbanas, as suas elites civis e militares e as aristocracias operárias) de resgatar Portugal do atraso histórico que todos diagnosticavam e do declínio inevitável, caso não fosse invertido o rumo dos acontecimentos nefastos que se iniciaram com o Ultimato de 1890.
Para os republicanos históricos da Geração de 90 e também para a nova geração de 1910, intransigente e rebelde, a República era a sua Dulcineia. Com a sua implantação ambicionavam tudo: o início de uma profunda reorganização que deveria modificar de alto a baixo toda a arcaica sociedade portuguesa. Imaginavam irradicar o analfabetismo que impedia a modernização social e conduzia à desmoralização das elites e ambicionavam modernizar o sistema político, pelo combate a todos os messianismos e corrupções clientelares que apontavam ao rotativismo monárquico. As instituições que queriam (escola, exército) e os órgãos de soberania que idealizavam (Parlamento, Municípios, etc.) deviam guiar-se pelos princípios democráticos que orientavam as sociedades modernas, como parecia acontecer na França da III República. Sonhavam com um verdadeiro projecto ultramarino, modernizador e autonomista e pretendiam desenvolver uma política de independência nacional, sustentada sobre a valorização dos recursos nacionais e africanos. Prometiam resolver, de forma justa, a condição económica e social das classes humildes e substituir uma moral católica e provinciana por uma moral secularizada e cosmopolita, sustentada na militância do político doutrinador, do militar educador e do professor sacerdote. Perante um país dependente, arcaico, rural e analfabeto, as elites republicanas (de homens de leis, de escritores e jornalistas, de oficiais das forças armadas, de médicos e de professores) incumbiram-se a si próprias de uma missão histórica: a de salvar a Pátria através da República, libertando o país do passado e das suas dependências crónicas. Se na primeira fase o movimento republicano era essencialmente federalista e democrático, na segunda, depois do Congresso de 1891, o seu projecto é o de galvanizar os portugueses para o ressurgimento nacional, através de um projecto interclassista e social-republicano, aliciante para as elites e pequenos possuidores e produtores e capaz de agregar também o operariado, muito eivado pelas ideologias anarquistas e socialistas.
Em finais de 1908, este compromisso histórico firmado em torno da refundação regeneradora da Pátria pela fusão da Nação com a República estava praticamente consolidado. O progresso da Ideia era assinalável: um núcleo de 7 deputados republicanos eleitos em 5 de Abril (onde avultava a figura de Afonso Costa) demolia de forma arrasadora todas as tentativas reformadoras da Monarquia Nova; a vitória da lista republicana para a Câmara de Lisboa, em Novembro desse ano, servida por reconhecidas competências técnicas na vereação, credibilizava a futura acção governativa do país pelos republicanos; uma acção de massas explosiva, centrada sobre comícios monumentais e uma vida associativa dos Centros Escolares Republicanos, intensa e proveitosa, juntava milhares de portugueses ao projecto republicano. O movimento reproduzia-se em organização, recrutamento e força: Lisboa era republicana e a revolução seria matemática e fatal, pensava-se em finais de 1908. De fora deste bloco regenerador ficariam apenas as elites monárquicas e o clero reaccionário, que seria preciso destronar das habituais e ancestrais fórmulas de domínio: social, religioso e político. Sabia-se bem como o recrutamento dos homens para a Ideia republicana havia de fazer-se pela doutrinação e como esta havia de sustentar-se sobre uma nova religião cívica, assente na festa cívica, na reconstrução do imaginário colectivo, numa nova gramática simbólica e mesmo numa renovação das fórmulas administrativas.
A nova unidade nacional, superadora da descrença e anunciadora da esperança, congregou-se em torno dos grandes símbolos nacionais, pelo recurso à História. Heróis, feitos valorosos e datas da independência da nação ressuscitam a verdadeira raça portuguesa e alimentam a alma do futuro homem novo republicano. A educação cívica e política passou a realizar-se por meio de novos manuais escolares, em festas e cerimónias públicas e em centenas de milhares de objectos que, pelo uso comum, veiculavam os ideais republicanos. Multiplicaram-se os símbolos da Ideia, materializada na Raça, na Família, na Pátria e na Humanidade. Destes, sempre sobressaíram três: o Hino Nacional (A Portuguesa), a Bandeira Nacional e a República (um busto ou um corpo completo de mulher, de seios desnudados e barrete frígio). A Portuguesa, elaborada por altura do Ultimato, com letra de Henrique Lopes Mendonça e música de Alfredo Keil, mantinha-se proibida desde 1891, altura em que animou a revolta do 31 de Janeiro no Porto, tendo sido adoptada pelo Governo Provisório em 1911 como Hino Nacional. Trata-se de um texto de carácter nacionalista e patriótico, onde estão omissas referências à democracia ou à República, embora tenha sido cantado em reuniões e comícios, a par da Marselhesa, esse sim um hino de honra à liberdade. Por seu lado, a bandeira verde-rubra acendeu uma querela que só terminará com a sua adopção, na Festa da Bandeira Nacional, em 1 de Dezembro de 1910, por decisão do Governo Provisório (Decreto de 22/11/1910). Autores como João Medina entroncam a bandeira nas tradições carbonárias e maçónicas que antecederam a implantação da República. Na verdade, as cores verde e rubra e a esfera armilar, preenchida pelas quinas, estão presentes em muitas das bandeiras que guiaram a acção conspirativa e revolucionária de entre 1907 e 1910». In Maria C. Proença e Luís Farinha, República e Republicanismo, Instituto Camões, Março 2009.

Cortesia de ICamões/JDACT