Vais
a Casa da Natália? Poesia, política e champanhe francês, sob o signo de uma
deusa grega
«(…)
Em Maio de 1960, um velho americano
toca à porta do 5.º andar do 52 da Rodrigues Sampaio, rua paralela à Avenida da
Liberdade, perto do Marquês. Natália
Correia?, certifica-se quando lhe abrem a porta. Henry Miller?!, responde a anfitriã, surpreendida. Miller, o
escandaloso autor de Trópico de Câncer, vai parar ao
serão mais famoso da cidade por indicação do crítico literário João Gaspar
Simões, que terá encontrado numa livraria da Avenida de Roma. A Natália ficou ufana. Era uma grande honra,
recorda o jornalista Fernando Dacosta, testemunha dessa noite. Estão também
presentes o poeta David Mourão-Ferreira e o crítico Delfim Santos, que há-de
escrever sobre isso em O Jornal.
Discute-se o Amor. E Miller junta-se à conversa. A dada altura, comenta que já
tinha estado na Grécia, mas que fora preciso
vir a Lisboa para conhecer uma deusa grega, lembra Dacosta.
A
poetisa açoriana tinha-se mudado para aquela casa em 1953. Os serões foram ganhando fama e no final da década de 50
são já um marco incontornável da vida intelectual lisboeta. Sem dia nem hora
marcados, às vezes uma vez por semana, outras mais; quase sempre depois do
jantar, reúnem-se ali cinco, 10, 20 amigos. É uma honra fazer parte do grupo.
Declama-se poesia, discute-se política, conspira-se contra Salazar. Sempre de forma exaltada, porque a Natália
era exaltada e exaltava tudo à volta dela, lembra a poetisa Maria Teresa
Horta. O escritor Urbano Tavares Rodrigues há-de recordar experiências de magnetismo com Almada Negreiros. Também há
apresentações de livros e outras ocasiões semipúblicas, incluindo a primeira
representação de uma peça de Sartre em Portugal: Entre Quatro Paredes / Huis Clos.
Conheci-a num serão sobre poesia do
século XVIII, conta o encenador Carlos Avilez. Ela estava deitada numa chaise-longue como uma deusa. Achei-lhe piada,
ela achou-me piada. Tornam-se grandes amigos.
Onde
quer que Natália esteja, é Natália quem manda. Em casa, de permanente boquilha,
senta-se num trono, uma poltrona de costas muito altas ao fundo do salão
principal, há outros dois, contíguos, rodeada pela magnífica biblioteca, um
busto de si própria, várias pinturas e outras representações suas oferecidas
por artistas que a admiram. Era uma
mulher lindíssima. Tinha sido a paixão de metade dos intelectuais de Lisboa,
assegura Maria Teresa Horta. Os artistas plásticos Almada Negreiros e Nikias
Skapinakis são presenças frequentes. Mourão-Ferreira também. O editor Ribeiro
Mello consegue penetrar no círculo. E Ary dos Santos torna-se indissociável
daquelas noites. Eram uma referência no
Portugal culto, o que mais se aproximava dos salões do século XIX em Paris. Tudo
muito exuberante, muito divertido. Não tinha nada a ver comigo, explica
Horta. Depois arrependi-me de não ter ido
mais vezes. Dacosta acrescenta: Era
uma feira popular, um misto de intelectuais e de bisbilhotice. Muito bem
servido. A Natália tinha a mania do champanhe francês. Às quatro da manhã, mandava vir o seu bife, lembra Avilez. A
ceia, que também inclui marisco, chega do Hotel Império, na mesma rua, dirigido
pelo marido, Alfredo Machado. Os serões, bem regados, bem vividos, com música
em fundo, duram até o sol raiar. A Natália, interpreta Dacosta, não sabia estar sozinha. Tinha de estar
sempre com a sua corte. Estas reuniões prolongam-se até 1971, altura em que não acabam, mas
mudam de casa. Vão para o largo da Graça, onde Natália acaba de abrir um
bar, O Botequim». In
Joana Stichini Vilela e Nick Mrozowski, LX 60, A Vida em Lisboa Nunca Mais Foi
a Mesma, Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2012, ISBN 978-972-20-5091-3.
Cortesia
D.Quixote/JDACT