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Ainda no meio da vida,
já estou cansado como se fosse nos confins do seu entardecer. Tenho a cabeça
branca e a alma devastada pela fúria de todos os ciclones. In António José de Almeida.
Memórias da tia Graça
«(…) As dores aumentavam de intensidade, o marido estava
prestes a acordar e então iria confortá-la, ela aprendera a captar-lhe a
ternura imensa que se escondia por detrás da reserva, sabia lidar com os seus
rompantes violentos que se quebravam na serenidade branda dela, era uma questão
de jeito. Aprendera a apreciar-lhe a força de carácter que o levara aos vinte e
seis anos a recomeçar os estudos para a merecer, como os cavaleiros de antanho
que sofriam provações pela dama eleita. Ele amava-a assim, embora ela soubesse
que esta situação era como uma lua-de-mel prolongada que teria um fim quando o
marido deixasse de ser estudante, porque a vida de estudante era preparatória
da de adulto e nessa altura os homens apartavam-se do universo feminino, cada
um com os seus próprios deveres. Por isso saboreava este tempo bendito em que
partilhavam quase tudo. Vinha-lhe um frio arrepanhado, tremia por baixo dos
cobertores, os intervalos entre as dores diminuíam, ai meu Deus, dai-me forças para aguentar! Júlio levantara-se
devagarinho para não a acordar e, por entre as pálpebras, ela via a figura
atlética envolta na camisa de dormir mover-se com cuidado na penumbra do
quarto. Mesmo agora, apesar do sofrimento, sentia desejo do seu corpo
musculoso, dos seus braços fortes, como amava esse homem a quem se entregara,
cortando com tudo, desobedecendo ao pai, incorrendo na sua ira, separando-se
das suas queridas irmãs, atiraada sozinha para um mundo novo. Uma dor mais
forte fê-la soltar um gemido e Júlio aproximou-se: - o que foi, minha querida? Sentes-te mal? Oh, meu Deus! Estás encharcada em suor! Então
ela abriu-se à piedade dele: - Começaram as dores, o nosso filho vai nascer. Júlio
exaltou-se numa ansiedade atabalhoada perante a situação embaraçosa que se
avizinhava: - Vou chamar o médico, a parteira, porque é que não me acordaste há mais tempo?
E vestia-se numa pressa aflita, chamava a criada para tratar
da senhora, a casa animava-se e agora ela já não estava sozinha com as dores
que cresciam dentro de si, as dores solitárias angustiam mais. O cunhado
António pediu licença para entrar: - posso
entrar, mana? Estava hospedado em casa deles, precisava de atenção,
coitado do pobre António, e logo neste momento em que ninguém lha poderia dar.
Era muito diferente do irmão Júlio, baixo e franzino, tinha um charme contagiante que a seduzia,
aproximou-se da cama e o seu cheiro inconfundível a lavanda inglesa invadiu o
quarto como aragem primaveril: - Ó minha querida mana, então agora é que é! Habemus Papam! Deixa-me arranjar-te as
almofadas. Assim. Ficas mais bem instalada para venceres a grande batalha. Com
movimentos hábeis encaixou-lhe o corpo dorido e depois sentou-se ao seu lado,
pegando-lhe na mão; Albertina gostava muito de António e penalizava-a ver o
infortúnio do seu casamento que ele jamais referia, fingindo que estava tudo
bem; mas não estava. Casara por amor com uma mulher interesseira que o aceitara
por dinheiro, parecia não haver um pingo de quentura dentro desse serzinho
delgado e diáfano, essa Guilhermina que nada parecia comover. Não é que António
fosse fácil|, mostrava-se gastador, disparatado, maluco com mulheres, mas
adorava a sua, apesar de tudo. E era tão bom, tão tocantemente bom, tão
insensatamente bom, como uma criança afável que tenta agradar a todos. A fortuna
herdada do pai gastara-a até ao derradeiro vintém e a última aquisição fora um
cofre. O que todos tinham rido, ele inclusive, quando contara a vontade
irreprimível que lhe dera de comprar um grande cofre sólido, à prova de fogo e
de ladrões, mas um cofre para quê?,
ora, para pôr o dinheiro que vier a
ganhar no futuro, pelo menos fico com recordação durável da minha herança.
Seu irmão Luís, o primogénito, que era o esperto da família para os negócios,
arranjara-lhe emprego como director de uma fábrica de loiças em Coimbra;
Guilhermina não quisera por nada acompanhá-lo e sair de Lisboa, Deus me livre, estou aqui muito bem, odeio mudanças!
António não se zangara, ora, ela há-de
acabar por vir, coitada, no fundo gosta de mim, tem lá o seu feitio, arranjo
uma casa tão bonita que ela não vai resistir! Mas neste momento, António
não pensava nos seus problemas, preocupava-se em mimar Albertina, era esse o
seu maior encanto, nada havia de tão importante que o perturbasse a ponto de
estragar o que fazia no presente. Júlio chegava, acompanhado do médico e da
parteira, Daniel Mattos mandou sair os homens e observou-a com cuidado, vamos lá ver esse maroto que está a afligir
toda a gente! Albertina enleada deixou-o mexer-lhe na intimidade do corpo,
o seu pudor revoltava-se contra aquelas mãos estranhas que a penetravam, que vergonha!» In Maria Luísa Beltrão, Os
Impetuosos, 1994, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-1857-8.
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