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19 de Agosto de 2001, foi inaugurada na Biblioteca Nacional, em Lisboa, uma
exposição do artista plástico José Santa-Bárbara, intitulada Vontades.
Uma Leitura de Memorial do Convento. Estava-se ainda relativamente
perto da atribuição do Prémio Nobel da literatura a José Saramago e o autor de Memorial
do Convento (1982), em grande parte graças a este romance, era já uma
figura com projecção e com notoriedade internacionais. O motivo e os temas da
exposição eram evidentes: o pintor fizera uma leitura de Memorial do Convento e as
obras exibidas traduziam, num outro médium,
o resultado dessa leitura. Recordo brevemente o que foi a mencionada exposição
(que à época conheceu assinalável êxito de público), tal como testemunha o
catálogo (Santa Bárbara, 2001): trata-se de 35 telas, compreendendo 11 estudos,
com recurso a diferentes técnicas e predominância do óleo e da têmpera vinílica
sobre papel colado; todos os estudos usam o pastel, com uma excepção (uma
aguarela). A feição geral das obras revela-nos um conjunto de figuras com
rostos alongados, individualmente e em grupos, pintados em cores sombrias e
envoltos por uma atmosfera pesada e dramática. Importa sublinhar desde já que
se trata, neste conjunto pictórico, sobretudo de personagens, para usar um
conceito que provém do romance e que aqui é pertinente. E parece estranho, à
primeira vista, que nenhum dos quadros fixe a monumentalidade do convento que
dá título ao romance: ele aflora apenas e de forma parcelar ou implícita em
episódios (e em telas) como, por exemplo, A
ara de Cheleiros, Infanta gatinhando, Os fazedores do capricho e sobretudo Os passatempos d’El-Rei.
O pintor
fixou-se em acções e em contexto que, articulando-se com as personagens, desde
logo sugerem o reiterar de componentes ideológicos que semanticamente
estruturam a história contada no romance: o esforço anónimo dos operários, os
cenários da Inquisição (maldita), a construção
da passarola voadora. Aqueles componentes odeológicos e também, naturalmente, o
tempo histórico em que transcorre a acção do Memorial do Convento, ou
seja, o século XVIII português e o reinado do monarca João V, que a História,
digamos oficial fixou com o cognome de Magnânimo.
É em função do tempo histórico, da sua representação ficcional e das figuras
que nela encontramos que me interessa aqui a pintura de José Santa-Bárbara, em
diálogo activo com o romance Memorial do Convento e, pela
mediação deste, com aquele tempo histórico.
Encontram-se
no catálogo Vontades. Uma Leitura de Memorial do Convento breves textos que
constituem uma boa abertura para a análise do diálogo a que me referi, um
diálogo desenvolvido em função da triangulação história-ficção-pintura. Num deles,
é o próprio pintor que nota que Saramago deu
nome aos fazedores do capricho, João Francisco, João Elvas, Manuel Milho,
Julião Mau-Tempo, José Pequeno, Francisco Marques, Joaquim da Rocha Baltazar
Mateus, Blimunda; e logo depois cita o conhecido passo do Memorial
do Convento em que são alfabeticamente elencados os nomes dos tais
fazedores: torna-los imortais, pois aí
ficam, se de nós depende, Alcino. Brás, Cristóvão, Daniel, Egas Firmino,
Geraldo… Ou seja, todos os nomes, sem título de
distinção social ou apelido de família, remetendo-se deste modo e por
antecipação para a lógica da nomeação do
desconhecido que reencontraremos num outro romance de Saramago,
precisamente Todos os Nomes (1997). Por fim: aqui fica a minha leitura d’aquilo que para mim é a verdadeira História.
Como quem diz: há uma leitura outra,
que não é modelizada em palavras, mas em imagens, e a verdadeira História requer a questionação (ideológica bem
entendido) da versão oficial que uma outra história tratou de instalar no
imaginário que dela se alimentou.
O próprio
José Saramago confirma o que fica sugerido no breve texto que escreveu para o catálogo.
Ou seja: a questionação empreendida por Santa-Bárbara, pela via da pintura,
prolonga o romance e aprofunda a indagação da História que nele pode ler-se.
Destaco três ideias desse texto: uma, Santa-Bárbara não pinta a História, mas
sim uma sua representação literária, ou seja, a ficção meta-historiográfica
chamada Memorial do Convento; outra, o pintor representou e sublinhou a figuração humana do Memorial do Convento, quer dizer, valorizou nele o processo
retórico-narrativo de construção de personagens; outra ainda, a pintura como
re-figuração permitiu a Saramago superar aquela espécie de persistente inibição
que o fez retardar por algum tempo a autorização para adaptações
cinematográficas (para estas, não para as teatrais ou para as operáticas) do Memorial
do Convento. Não quero ver as caras das minhas personagens, dizia
Saramago; mas agora, vendo as telas de Santa-Bárbara, sei, finalmente, como era Blimunda. O que quer dizer que a pintura deu à personagem o rosto que o
romance mal havia esboçado.
Curiosamente,
é um outro escritor, Orlando Costa, quem,
igualmente num texto do catálogo, nota: Neste conjunto de quadros impõe-se sobretudo a figuração, como uma ordem a que o pintor obedece com
um sentido de liberdade instrumental de criatividade
interpretativa, figurantes sem voz, personagens carregadas de silêncio e vontades,
vontades, mesmo em trabalhos forçados. O termo figuração está dito e tem um alcance teórico e metodológico que
hoje tratamos de acentuar, no que toca ao seu significado conceptual; no caso
de Santa-Bárbara, o movimento de figuração confirma a relevância das
personagens como imagens disponíveis para uma releitura cuja dimensão
fenomenológica é salientada num outro texto do catálogo, o do também pintor
Rogério Ribeiro. Diz Ribeiro: os quadros de Santa-Bárbara são uma construção paralela, um outro tecido,
associando o desígnio de dar forma, onde
cada um já pôde construir as inevitáveis imagens mesmo que as não represente;
e assim, se o pintor pôde propor um certo
rosto das personagens, não é essa proposta outra coisa a não ser o
resultado de uma leitura da História e de algumas das suas personagens agora
refiguradas, desde logo em confronto com as imagens que a leitura de cada
leitor tratou de constituir. Melhor: trata-se
de uma
leitura da leitura da História, pois que ela se centra num romance que
só o foi a partir da pesquisa
meta-histórica que o escritor José Saramago levou a cabo, para proceder
à figuração ficcional do monarca João V». In Carlos Reis, Figuração da personagem, A ficção
meta-historiográfica de José Saramago, Departamento de Línguas, Literaturas e
Culturas, Academia, Universidade de Coimbra.
Cortesia
da UCoimbra/JDACT