Barcelona
«(…) Entre ambos lá levaram Guils para o quarto do ancião, no primeiro
andar da casa. Moshe ofegava com o esforço, mas parecia querer recuperar o
fôlego para continuar a discussão. Abraão não lho permitiu, tinha muito
trabalho pela frente e, depois de agradecer a ajuda ao amigo, despediu-o sem
contemplações. - Agradeço-te, Moshe, mas não quero comprometer-te mais neste
assunto. Quanto menos souberes, melhor será para ti. Abraão despiu Guils, que
ardia em febre, tapou-o e dirigiu-se à pequena divisão que lhe servia de
consultório e de laboratório. Ali preparava os seus medicamentos, possuía uma
ampla farmácia cheia de ervas medicinais e de remédios para curar.
Tranquilizou-o o aroma intenso e familiar, mas a urgência da situação obrigou-o
a apressar-se, desconhecia a natureza do veneno mas guiava-se pelos sintomas
que tinha verificado no doente. Teria de experimentar um antídoto geral, que abarcasse
grande número de substâncias tóxicas, pois não tinha tempo para grandes
estudos. Começou a trabalhar sem deixar de fazer visitas constantes ao doente,
de lhe aplicar compressas de salgueiro para a febre e de tentar que engolisse pequenos
goles de água. Finalmente encontrou uma fórmula que lhe pareceu adequada e uma
vez preparada, começou a ministrá-la lentamente, gota a gota, até considerar
que a dose era suficiente. Tinha de agir com prudência, um veneno mata outro
veneno, mas também pode acabar com o doente, a dose devia ser exacta, sem margem
de erro.
Sentou-se num banquinho ao lado da cama, a observar a respiração do
doente. Ao fim de duas horas, Guils pareceu melhorar. O seu rosto de um
cinzento macilento reanimava-se. Um rosa-pálido começou a tingir o rosto
bronzeado e a respiração deixou de ser ofegante, para adquirir um ritmo mais
pausado. Abraão respirou fundo, era bom sinal, mas nunca fiando. Anos de
experiência haviam-lhe ensinado que os venenos actuam de forma traiçoeira e
inesperada. Em alguns casos, as melhoras significavam apenas o preâmbulo da
morte, mas reconheceu que nada mais podia fazer, unicamente esperar e rezar. Afastou
o banco para um canto e arrastou a poltrona preferida para o lado de Bernard
Guils. O móvel estava velho e meio desengonçado, como ele, mas guardava ainda
nos gastos almofadões a forma do seu corpo. Estava exausto, a actividade
desenfreada das últimas horas convertia-se numa fadiga imensa, e nem sequer se
tinha lembrado de tomar os seus próprios remédios. Pensou que teria tempo de
sobra mais tarde; agora precisava de descansar.
Acordou sobressaltado. Um belíssimo cavalo árabe, branco como a neve,
fitava-o desafiador. Crina ao vento, patas dianteiras levantadas escouceando no
ar, impaciente. Um relincho, como um grito desesperado, atravessou-lhe os
tímpanos num pedido desconhecido. Tapou os ouvidos com ambas as mãos, incapaz de
suportar aquele som agudo, semiconsciente contudo, estonteado. Precisou de uns
segundos para se dar conta de que tudo não tinha passado de um sonho.
Adormecera profundamente e a alma abandonara-lhe o corpo viajando para regiões
desconhecidas e distantes e de lá alguém lhe mandava uma mensagem que não
conseguia decifrar; alguém ou talvez alguma coisa.
Fez um esforço para acordar por completo a fim de observar o doente.
Bernard parecia mergulhado num sono tranquilo, as suas feições estavam
descontraídas e serenas, alheias a qualquer perigo. A respiração era normal, o
silvo rouco dos pulmões havia desaparecido e o peito subia e descia num ritmo
pausado. Abraão acalmou-se, ainda era possível recuperá-lo, talvez os remédios
salvassem aquela vida e todos os seus conhecimentos, que tanto esforço lhe
haviam exigido, servissem para alguma coisa. Tão velho, tantos anos, e contudo
sentia-se impotente diante da morte. Recordou a juventude, a aprendizagem, a
primeira morte..., afectou-o tanto que esteve quase a abandonar os estudos, a
deixar tudo e a voltar para casa a fim de substituir o pai na oficina de
joalharia. Mas não o fez e o pai, desiludido com aquele filho que não pretendia
continuar a tradição familiar, nunca lhe havia perdoado, recordou abatido». In
Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História, Sicidea,
2007, ISBN 978-84-611-4998-8.
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