quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A Sombra do Templário. Século XIII. Núria Masot. «Já nada o prendia ao passado, uma nova vida se abria diante dos seus olhos e nem sequer voltou a cabeça, sorriu e atravessou o Jordão. Abraão viu uma grande paz espalhar-se no rosto de Bernard…»

Cortesia de wikipedia

Barcelona
«(…) Mas não era o momento oportuno para reflexões inúteis, divagações da memória que parece viajar livre e independente do nosso sofrimento, alheia à nossa dor. Um cavalo branco e a figura do pai não eram os melhores companheiros para o trabalho que o esperava, mas conhecia os labirintos da mente humana, as suas estranhas relações com a realidade. Abraão reconhecera, há muito, que a realidade não existe. Pelo menos não aquela de que falavam na sinagoga ou nos templos cristãos, e esse assunto trouxera-lhe muitos problemas dentro da sua própria comunidade. Problemas teológicos, murmurou com um sorriso fugaz. Não, não era altura para divagações filosóficas. Deixou dormir Guils. Parecia sereno, mas Abraão não tinha a certeza de que viesse a acordar, provavelmente a única coisa que era capaz de lhe proporcionar era a paz da agonia, a ausência de dor. Afastou todos estes pensamentos com dificuldade, o cavalo branco continuava ali, desafiador e impaciente, e transmitia-lhe uma mensagem que ele não entendia. Preparou uma sopa quente. Se Guils acordasse, seria o melhor alimento, um caldo especial elaborado com ervas, para dois doentes. A única diferença entre ambos era a data-limite. Passeou pela casa, a única coisa que lhe fizera falta durante a viagem, os livros, a farmácia, os estudos de geometria..., tudo estava na mesma. A cunhada encarregara-se de manter aquelas quatro paredes limpas e em ordem durante a sua ausência, que tudo se mantivesse como se ele nunca se tivesse ausentado, e que o fantasma de sua mulher, Rebeca, morta há muitos anos, continuasse no activo a limpar e a organizar a vida de Abraão.
Voltara a perder-se em recordações, como se estas se recusassem a deixá-lo livre, quando ouviu o grito de Guils. Bruscamente, saiu do devaneio e correu para o quarto onde foi encontrar o doente alterado, de novo empapado em suor, com a tez lívida. - Guillem, Guillem, Guillem! – gritava Guils, com um fio de voz. - Sou o Abraão, amigo Bernard, o vosso companheiro de viagem, tranquilizai-vos, estais em lugar seguro, em minha casa, não deveis preocupar-vos. - O ancião secava-lhe o suor, segurava o homem nos braços. - Abraão Bar Hiyya. - Guils dissera o nome completo, com voz clara e forte, recuperados os sentidos. - Abraão, meu bom amigo, tenho muito pouco tempo. É muito importante que guardeis o embrulho que eu trazia debaixo da camisa. Não deixeis que caia em mãos indevidas. Jurai-me que o fareis. - Deveis descansar, Bernard, não vos preocupeis com coisa alguma a não ser em recuperar a saúde. O ancião tentava acalmá-lo e não lhe disse que não havia embrulho algum, nada para além das roupas. Pensou que talvez se tratasse de uma alucinação por causa da febre e não quis perturbá-lo mais. - Deveis avisar a Casa do Templo, Abraão, deveis comunicar a minha chegada, a minha morte.., eles saberão o que fazer, procurarão que não tenhais problemas por me ajudardes, eles... Avisai-os imediatamente e entregai o embrulho a Guillem, ele está à minha espera…
Bernard Guils torceu-se de dor a cor de cinza reapareceu-lhe no rosto, o silvo voltou aos seus pulmões. O médico viu com tristeza que os seus esforços haviam sido vãos, nada parecia deter os efeitos daquele tóxico letal. Voltou a ministrar-lhe a poção que preparara, se bem que desta vez soubesse que apenas podia acalmar a ansiedade e nada mais podia fazer pela vida dele. Abraão, é preciso prevenir Guillem… a Sombra há-de surgir da escuridão, ele que se afaste da escuridão! Bernard Guils caiu sobre o leito, agitado, vítima das suas alucinações. Estava na estrada, perto do Jordão, tinha andado pelo deserto e estava exausto e cheio de sede. Foi então que a viu, estava ali, à espera dele, como se não tivesse feito mais nada na vida senão estar à sua espera. Branca como a capa que tinha aos ombros, com a crina ao vento, as patas dianteiras a escoucear, lançando um relincho de boas-vindas. A sua bonita égua árabe estava à sua espera há muito tempo. Aproximou-se dela, acariciando-lhe a cabeça, falando-lhe num sussurro como sabia que ela gostava e, segurando as rédeas, montou suavemente. Já nada o prendia ao passado, uma nova vida se abria diante dos seus olhos e nem sequer voltou a cabeça, sorriu e atravessou o Jordão. Abraão viu uma grande paz espalhar-se no rosto de Bernard, o seu corpo descontrair-se liberto da dor, o estertor desapareceu e com ele a vida. Uma enorme tristeza se apoderou do velho médico quando cerrou o único olho entreaberto e lhe cobriu o rosto com o lençol. Permaneceu sentado, imóvel e os seus lábios começaram a recitar uma oração hebraica por aquele cristão que não havia conseguido salvar». In Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.

Cortesia de Sicidea/JDACT