Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«(…) Os monólogos e as
confidências com os duplos, Inês com a Ama e Pedro com o Secretário,
neste acto I, dão-nos a verdadeira dimensão dos sentimentos dos dois amantes,
sem que seja necessário um encontro entre ambos, como gostaria Almeida Garrett,
numa afirmação dos seus gostos românticos.
NOTA: O acto I da
edição de 1587 compõe-se de uma
única cena em que, após o longo monólogo do Infante, este dialoga com o
Secretário. É pela voz do seu fiel e leal servidor que são aduzidos pormenores que
escureciam o nome de Inês, tais como a sua bastardia e a nefasta
influência dos seus parentes. Este texto segue de perto os dados cronísticos,
não só nestes aspectos, como ainda no que se refere ao casamento secreto e à
atitude do Infante em não o querer divulgar. Na edição de 1598 tudo permanece, no que se refere ao casamento, no plano do
estritamente necessário, de forma a não desapear a protagonista do pedestal de
heroína trágica. Sobre a observância, por parte de Ferreira, dos
preceitos, que em Aristóteles, em Horácio e nas Poéticas do Renascimento foram
aceites como suporte da unidade da acção, e que na edição definitiva da Castro
serviram para valorizar semântica e esteticamente o texto (Teatro clássico no século XVI).
O infante, na cena II,
monologa com a sua paixão em que ecoa o Omnia uincit amor da Écloga X
virgiliana, tantas vezes glosado na poesia de Quinhentos. Mais, o exemplo do
Bolonhês, o mau exemplo, na reflexão
do Coro, Contr’as divinas leis, contra as
humanas, justifica o carácter providencial das relações ilegítimas, já que
Deus queria ...dar ao mundo o grande, / Forte,
prudente e santo, um só Dinis. O diálogo com o Secretário, na última cena
do acto I, serve para dar relevo à paixão de Pedro, elevada até ao
paroxismo, que se exprime na tenacidade obsessiva de uma série de adynata,
ao gosto de Petrarca:
Não cuidem que me posso apartar donde
estou todo, onde vivo: que primeiro
a terra subirá onde os ceos andam,
o mar abrasará os ceos e terra,
o fogo será frio, o sol escuro,
a lua dará dia, e todo mundo
andará ao contrairo de sua ordem
que eu, ó Castro, te deixe, ou nisso cuide.
Dei-te alma, dei-te fé, guardá-la-ei firme.
Confio isto de ti, não me descubras.
A terminar este acto I,
actua o coro I, o Coro das moças de Coimbra, que prolonga o assunto da
peça e entoa, em belíssimas estrofes de canção petrarquista, a exaltação do
Amor, para logo a seguir, na antístrofe, apresentar os seus malefícios, topoi
presentes já nas Trovas de Garcia de Resende, no Cancioneiro
Geral. O Coro tinha já intervindo, nas duas falas da cena III do acto I,
com valor semelhante ao da tragédia clássica, voz do senso comum. O acto II
apresenta-nos, numa primeira cena, Afonso IV, na sua humanidade, a reflectir
sobre o ofício e os trabalhos do rei, numa atitude que estabelece uma ligação
perfeita com as últimas palavras do Secretário, no acto I. Confessa o Rei o seu
desassossego, causado pelos deveres de estado e pela desobediência do filho,
que teima na sua ligação amorosa com Inês:
...é mais seguro
a si cada um reger, que o mundo todo.
O debate entre o Rei e
os Conselheiros espraia-se em considerações teóricas, constantes da
tratadística pedagógico-política renascentista, adequada aos horizontes e expectativas
culturais do público. Quando a teoria dá lugar ao caso concreto de Inês,
esses princípios gerais são aplicados pelos conselheiros do rei de forma a
justificarem a necessidade, a ananke trágica, e urgência da morte de Inês.
O rei reitera a inocência da protagonista, propõe alternativas, outros meios,
para impedir a sua morte: Não haverá outro
meio? e Matá-la é cruel meio, e
rigoroso. Intensifica-se a acção dramática, a que corresponde um ritmo em
esticomitia e mesmo em antilabe, a exprimir o vigor do agon;
acentua-se a intencionalidade trágica, traduzida semanticamente, a nível dos
lexemas utilizados, na repetição insistente da antinomia morrer / matar. Vence,
num primeiro momento, a tolerância, a clemência régia, que dá lugar, num segundo
momento, à pusilanimidade e à inconstância, que se opõem ao ideal estóico do
governante, identificado nas tragédias de Séneca com a figura do sapiens».
In
Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama,
Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula
Quintela, Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.
Cortesia da
FLUPorto/JDACT