«(…) Estava verdadeiramente fatigada e estonteada depois daquela
esgotante viagem que acabáramos de fazer Senti uma enorme tristeza. Só me dava
vontade de chorar com a dor do meu desapontamento e desconforto da situação em
que me encontrava. Ia já a arrastar os pés e a ficar para trás: seguiam todos
em grande palreio e alheios ao que se passava. Quando chamei por Lica, ele
voltou-se para mim e disse em português: …
tem paciência, não te posso ajudar, o que diriam se te vissem encostada a mim?
Olhei para a frente quase em lágrimas. Iam todos ligeiros, a andar naturalmente,
chapinhando ao longo do terreno lamacento e irregular. Quem era eu para me
queixar? Ganhei coragem e continuei a andar, como uma autómata e em silêncio,
enterrando as minhas sandálias de salto alto na lama quente e escorregadia, sem
mais me importar. Um pouco antes de chegarmos a casa parámos numa lojeca que
vendia chá, à beira da estrada, na esperança de que houvesse qualquer coisa
para comermos. Todos os serviços estavam paralisados e nada havia em casa para comer,
nem mesmo pão ou leite. Ao sair do carro, Bhauji, nunca dado a muitas palavras,
voltou-se para mim e disse, com um sorriso malicioso: veja lá, com a sua chegada à Índia até todo o país tremeu. Nem me
lembro se cheguei a sorrir ou não.
Entrámos na loja do chá. Era uma verdadeira espelunca de madeira com um
balcão por cima da sala de entrada e com uma escada bastante precária por onde
se subia para lá chegar. Parecia que tudo oscilava debaixo dos nossos pés. Era
mesmo para admirar como tudo aquilo não foi pelos ares na fúria do ciclone.
Havia várias mesas cheias de pratos sujos e copos de chá que tinham deixado a
marca em várias rodelas de chá espalhado sobre a superfície das mesas. Já nem
fiz caso do cheiro das frituras enroladas em especiarias. Trepámos logo para o
balcão, subindo as escadas oscilantes, cuja madeira rangia a cada pegada, na
esperança de que talvez ali estivesse mais limpo. Pelo menos seria mais
afastado da turba do 1.º piso. Foi-nos servido o chá. Não consegui comer nada.
Fazia agora um calor terrível e o barulho tornava-se ensurdecedor. Tudo me parecia
tão irreal! Quase um pesadelo. Olhei para Taí, envolta no seu sari de organdi cor-de-rosa e flores de jasmim a
enfeitar o cabelo. Silenciosamente, continuava a bebericar o chá em pequenos
goles, alheia a tudo o que a rodeava. Veio-me subitamente ao pensamento a ideia
de uma flor de lótus caída numa poça de lama.
Quando chegámos a casa fomos levados directamente para o nosso quarto,
no 1.º andar Estava exausta. Tinha sido um longo dia, agitado e cheio de
emoções. Atirei-me para cima da cama e caí num sono profundo. Bateram
suavemente à porta do quarto e de seguida entrou um criado com o chá da manhã
numa bandeja. Era ainda cedo, mas a luz do dia já parecia brilhante e no céu
não se via uma única nuvem. Este era decerto um grande contraste em comparação
com o nevoeiro e o céu cinzento de Paris, onde as árvores já estavam nuas, em
preparação para o Inverno. Senti-me mais descontraída e em paz. Sentámo-nos na
cama a bebericar o chá, deliciosamente preparado à maneira indiana com leite e
açúcar. Que luxo sermos servidos na cama. Pela janela aberta podia ouvir-se o
som de um comboio que passava ao longe e a música de um rádio na vizinhança. De
repente apareceu à porta a nossa sobrinha Shalini, que vinha dar-nos os bons
dias e perguntar se eu gostaria de alinhar num longo passeio de automóvel com o
pai, que tinha de ir fazer uma inspecção para avaliar os danos causados pelo
ciclone. O passeio duraria todo o dia e levar-nos-ia ao longo da costa, através
de uma área cortada por enseadas e backwaters
de beleza excepcional. Saltei logo da cama, entusiasmada. Que sorte maravilhosa
poder ver alguma coisa do país mal tinha chegado. Lica não quis ir mas eu não
podia perder esta óptima oportunidade». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal
e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.
Em memória de Ofélia e Álvaro José.
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