terça-feira, 1 de setembro de 2015

As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961. Edila Gaitonde. «Tinha sido um longo dia, agitado e cheio de emoções. Atirei-me para cima da cama e caí num sono profundo. Bateram suavemente à porta do quarto…»

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«(…) Estava verdadeiramente fatigada e estonteada depois daquela esgotante viagem que acabáramos de fazer Senti uma enorme tristeza. Só me dava vontade de chorar com a dor do meu desapontamento e desconforto da situação em que me encontrava. Ia já a arrastar os pés e a ficar para trás: seguiam todos em grande palreio e alheios ao que se passava. Quando chamei por Lica, ele voltou-se para mim e disse em português: … tem paciência, não te posso ajudar, o que diriam se te vissem encostada a mim? Olhei para a frente quase em lágrimas. Iam todos ligeiros, a andar naturalmente, chapinhando ao longo do terreno lamacento e irregular. Quem era eu para me queixar? Ganhei coragem e continuei a andar, como uma autómata e em silêncio, enterrando as minhas sandálias de salto alto na lama quente e escorregadia, sem mais me importar. Um pouco antes de chegarmos a casa parámos numa lojeca que vendia chá, à beira da estrada, na esperança de que houvesse qualquer coisa para comermos. Todos os serviços estavam paralisados e nada havia em casa para comer, nem mesmo pão ou leite. Ao sair do carro, Bhauji, nunca dado a muitas palavras, voltou-se para mim e disse, com um sorriso malicioso: veja lá, com a sua chegada à Índia até todo o país tremeu. Nem me lembro se cheguei a sorrir ou não.
Entrámos na loja do chá. Era uma verdadeira espelunca de madeira com um balcão por cima da sala de entrada e com uma escada bastante precária por onde se subia para lá chegar. Parecia que tudo oscilava debaixo dos nossos pés. Era mesmo para admirar como tudo aquilo não foi pelos ares na fúria do ciclone. Havia várias mesas cheias de pratos sujos e copos de chá que tinham deixado a marca em várias rodelas de chá espalhado sobre a superfície das mesas. Já nem fiz caso do cheiro das frituras enroladas em especiarias. Trepámos logo para o balcão, subindo as escadas oscilantes, cuja madeira rangia a cada pegada, na esperança de que talvez ali estivesse mais limpo. Pelo menos seria mais afastado da turba do 1.º piso. Foi-nos servido o chá. Não consegui comer nada. Fazia agora um calor terrível e o barulho tornava-se ensurdecedor. Tudo me parecia tão irreal! Quase um pesadelo. Olhei para Taí, envolta no seu sari de organdi cor-de-rosa e flores de jasmim a enfeitar o cabelo. Silenciosamente, continuava a bebericar o chá em pequenos goles, alheia a tudo o que a rodeava. Veio-me subitamente ao pensamento a ideia de uma flor de lótus caída numa poça de lama.
Quando chegámos a casa fomos levados directamente para o nosso quarto, no 1.º andar Estava exausta. Tinha sido um longo dia, agitado e cheio de emoções. Atirei-me para cima da cama e caí num sono profundo. Bateram suavemente à porta do quarto e de seguida entrou um criado com o chá da manhã numa bandeja. Era ainda cedo, mas a luz do dia já parecia brilhante e no céu não se via uma única nuvem. Este era decerto um grande contraste em comparação com o nevoeiro e o céu cinzento de Paris, onde as árvores já estavam nuas, em preparação para o Inverno. Senti-me mais descontraída e em paz. Sentámo-nos na cama a bebericar o chá, deliciosamente preparado à maneira indiana com leite e açúcar. Que luxo sermos servidos na cama. Pela janela aberta podia ouvir-se o som de um comboio que passava ao longe e a música de um rádio na vizinhança. De repente apareceu à porta a nossa sobrinha Shalini, que vinha dar-nos os bons dias e perguntar se eu gostaria de alinhar num longo passeio de automóvel com o pai, que tinha de ir fazer uma inspecção para avaliar os danos causados pelo ciclone. O passeio duraria todo o dia e levar-nos-ia ao longo da costa, através de uma área cortada por enseadas e backwaters de beleza excepcional. Saltei logo da cama, entusiasmada. Que sorte maravilhosa poder ver alguma coisa do país mal tinha chegado. Lica não quis ir mas eu não podia perder esta óptima oportunidade». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.

Em memória de Ofélia e Álvaro José.

Cortesia de ETágide/JDACT