1553. Whitehall
«Como tudo o que é importante na
vida, esta história começou com uma viagem, na estrada para Londres, mais precisamente;
era a minha primeira excursão a essa cidade, a mais fascinante e sórdida de todas.
Partimos antes da alvorada, dois homens a cavalo. Nunca fora além do Worcestershire,
o que tornou ainda mais inesperada a chegada de mestre Shelton, trazendo a ordem
para eu me apresentar na corte. Mal tendo tempo para juntar os meus poucos
pertences e para me despedir da criadagem (incluindo a minha querida Annabel,
que chorou como se o seu coração se fosse partir), vi-me montado a cavalo, a deixar
para trás o castelo de Dudley, onde vivera toda a minha vida, sem saber quando ou
se regressaria. O empolgamento e a apreensão que sentia deveriam ter chegado para
me manter acordado. Ainda assim, depressa me deixei adormecer, embalado pela monotonia
dos campos que atravessávamos e pelo andar vagaroso e confortável do Cinábrio, o meu ruão.
Acordei em sobressalto ao ouvir mestre
Shelton dizer: Brendan, meu rapaz. Vamos, acorda. Estamos quase a chegar ao nosso
destino. Endireitei-me na sela. Pestanejando para espantar o sono, ergui a mão para
compor o chapéu, mas apenas senti os meus cabelos ruivos-claros, que eram impossíveis
de pentear. Ao chegar para me levar de volta consigo, mestre Shelton franzira o
sobrolho ao ver como eu os tinha compridos e resmungara que os ingleses não
deviam usar o cabelo grande, como os franceses faziam. Tão-pouco ficaria satisfeito
ao saber que eu perdera o chapéu. Oh, não... - Olhei para ele. Mestre Shelton
fitou-me, impassível. Uma cicatriz franzida atravessava-lhe a face esquerda, maculando-lhe
as feições duras. Não que fizesse diferença. Archie Shelton nunca fora um homem
bonito. Ainda assim, era senhor de uma estatura impressionante e montava o seu garanhão
com autoridade; o seu manto ostentava um brasão puído, um urso segurando um bordão,
assinalando o seu estatuto de administrador da família Dudley. A qualquer
outro, aquele seu olhar granítico teria inspirado ansiedade. Mas fazia oito anos
que mestre Shelton fora recebido na família para supervisionar a minha educação,
pelo que já me acostumara aos seus modos taciturnos.
Caiu-te há uma légua. Estendeu-me
o chapéu. Desde os meus tempos nas guerras escocesas que não via ninguém dormir
tão profundamente sentado no dorso de um cavalo. Dir-se-ia que já estiveste em Londres
algumas cem vezes. Detectei um humor áspero naquela sua repreensão, o que
confirmou a minha suspeita de que mestre Shelton se sentia secretamente satisfeito
por esta mudança abrupta na minha vida, embora não fosse do seu feitio dar a sua
opinião sobre o que quer que o duque ou lady Dudley ordenassem. Na corte, não vais
poder andar a perder o chapéu, avisou. Tornando a pôr na cabeça o chapéu de tecido
vermelho, olhei para o alto da colina, onde a estrada salpicada de sol
desaparecia. Um escudeiro deve ter sempre atenção à sua aparência. Mestre Shelton
olhou-me fixamente. Os meus senhores esperam muito dos seus criados. Confio que
saberás comportar-te junto daqueles que estão acima de ti.
Claro. Endireitando os ombros,
recitei, no meu tom mais obsequioso: … é
aconselhável guardar silêncio sempre que possível e manter sempre o olhar em baixo
quando nos dirigem a palavra; quando na dúvida sobre como devemos dirigir-nos a
alguém, bastará dizer, simplesmente, meu senhor ou minha senhora. Fiz uma pausa.
Vedes! Não me esqueci. Mestre Shelton resfolegou. Estou a ver que não. Vais ser
o escudeiro de lorde Robert, o filho de sua senhoria, o duque, e não estou
disposto a ver-te desbaratares uma oportunidade assim. Se te distinguires nessa
função, quem sabe? Poderás chegar a camareiro ou talvez a administrador. Os
Dudley são conhecidos por recompensarem aqueles que os sabem servir. Devia ter desconfiado,
pensei mal lhe ouvi estas palavras.
Ao instalar-se em permanência na corte
com a sua família, lady Dudley passara a enviar mestre Shelton duas vezes por ano
ao castelo. Ao visitar-nos, ele fazia por deixar bem claro que viera ver que tal
andavam as coisas, mas, se anteriormente os meus deveres se cingiam aos estábulos,
a partir dessa altura mestre Shelton tratou de me confiar outras tarefas
domésticas e começou a pagar-me uma modesta soma. Inclusivamente, arranjou-me um
tutor, um monge ali da zona que passou a viver no castelo, um dos milhares que,
desde que o velho rei Henrique acabara com os mosteiros, calcorreavam a Inglaterra
vivendo de súplicas e de combinações. Para a criadagem do castelo de Dudley, o administrador
da sua senhora era uma aberração, um homem frio e solitário que não casara nem
tivera filhos; mas, comigo, ele sempre se mostrara inesperadamente amável. Sabia
agora porquê». In CW Gortner, O Segredo dos Tudor, 2011, tradução de Miguel Romeira,
20/20 Editora, Topseller, 2014, ISBN 978-989-862-643-1.
Cortesia de Topseller/20/20Editora/JDACT