sexta-feira, 19 de outubro de 2018

A Bolsa e a Vida Jacques Le Goff. «Para evitar qualquer anacronismo, se quisermos tentar analisar o fenómeno medieval da usura numa perspectiva económica, é preciso reter estas duas observações de Polanyi…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A usura designa uma multiplicidade de práticas, o que dificultará o estabelecimento de uma fronteira entre o lícito e o ilícito nas operações que admitem juros. Esta distinção, difícil mas necessária, entre usura e juro, esta horrível fascinação por um animal multiforme, ninguém melhor as sentiu do que Ezra Pound no século XX.

O mal é a Usura, neschek a serpente
neschek cujo nome é conhecido, a corruptora,
além da raça e contra a raça a corruptora
Toxos hic mali medium est
Aqui está o centro do mal, ígneo inferno sem sossego,
A gangrena corrompendo todas as coisas, Fafnir o verme,
Sífilis do Estado, de todos os reinos,
Excrescência do bem comum,
Fazedora de quistos, corruptora de todas as coisas,
Escuridão, a corruptora,
Má gémea da inveja,
Serpente das sete cabeças, Hidra,
penetrando em todas as coisas.

Mas há também Usura, a usura em si, denominador comum de um conjunto de práticas financeiras proibidas. A usura é a arrecadação de juros por um emprestador nas operações que não devem dar lugar ao juro. Não é portanto a cobrança de qualquer juro. Usura e juro não são sinónimos, nem usura e lucro: a usura intervém onde não há produção ou transformação material de bens concretos. Thomas de Chobham começa a sua exposição sobre a usura com estas considerações: em todos os outros contratos posso esperar e receber um lucro (lucrum), assim se eu lhe tivesse dado alguma coisa poderia esperar um contradom (antidonum), isto é, uma réplica ao dom (contra datam) e poderia esperar receber, visto que fui o primeiro a lhe dar. Do mesmo modo, se eu lhe tivesse dado em empréstimo as minhas vestes ou o meu mobiliário poderia receber um preço por eles. Por que não aconteceria o mesmo se eu lhe tivesse dado em empréstimo o meu dinheiro (denarios meos)? Tudo está aí: é o estatuto do dinheiro, na doutrina e na mentalidade eclesiásticas da Idade Média, que é a base da condenação da usura. Não me entregarei aqui a um estudo propriamente económico, que deveria aliás levar em conta a maneira, muito diferente da nossa, pela qual são percebidas as realidades que hoje isolamos para fazer dela o conteúdo de uma categoria específica: a económica. O único historiador e teórico moderno da economia que nos pode ajudar a compreender o funcionamento do económico na sociedade medieval parece-me ser Karl Polanyi (1886-1964).
Para evitar qualquer anacronismo, se quisermos tentar analisar o fenómeno medieval da usura numa perspectiva económica, é preciso reter estas duas observações de Polanyi e dos seus colaboradores. A primeira, extraída de Malinowski, diz respeito ao domínio do dom e do contradom:

na categoria das transações, que supõem um contradom economicamente equivalente ao dom, encontramos um outro facto desconcertante. Trata-se da categoria que, de acordo com as nossas concepções, deveria praticamente confundir-se com o comércio. Não é nada disso. Ocasionalmente, a troca se traduz pelo vaivém de um objecto rigorosamente idêntico entre os parceiros, o que tira assim da transação toda a finalidade ou toda significação económica imaginável! O simples facto de um porco voltar ao seu doador, mesmo por via indirecta, troca de equivalentes, em vez de orientar-se na direcção da racionalidade económica, demonstra ser uma garantia contra a intrusão de considerações utilitárias. A única finalidade da troca é estreitar a rede de relações reforçando os laços de reciprocidade.

Na verdade, a economia ocidental do século XIII não é a economia dos indígenas das ilhas Trobriand no início do século XX; mas, se é mais complexa, a noção de reciprocidade domina a teoria das trocas económicas numa sociedade fundada nas redes de relações cristãs e feudais». In Jacques Le Goff, A Bolsa e a Vida, 1986/1989/2004, Editorial Teorema, 2006, ISBN 978-972-695-683-9.

Cortesia de ETeorema/JDACT