terça-feira, 16 de outubro de 2018

O Segredo dos Flamengos. Federico Andahazi. «Nesse manuscrito, estava o valioso Secretus coloris in status purus, o mítico segredo das cores em estado puro. No entanto, quando Francesco Monterga leu com avidez o tratado e releu várias vezes…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Pietro dava-se conta de que agora conhecia uma grande quantidade de pigmentos, óleos, tintas e ferramentas cuja existência antes ignorava completamente; reconhecia que podia falar de igual para igual com o seu mestre sobre diferentes materiais e técnicas e sobre os artefactos mais extraordinários, mas também se perguntava de que servia toda aquela erudição se tudo aquilo lhe estava vedado, a não ser para limpar, organizar e classificar. Mas Francesco Monterga sabia que quanto mais retardasse os ímpetos de seu discípulo, tanto maior seria a força com que libertaria o seu talento contido quando chegasse o momento. E o grande dia chegou quando Pietro menos esperava. Numa manhã qualquer, o mestre chamou o seu pequeno aprendiz. Diante dele estavam uma pequena tábua, três lápis, cinco formões bem afiados e um frasco de tinta negra. Como uma homenagem ao seu mestre, Francesco Monterga encomendou a Pietro della Chiesa o seu primeiro exercício. No coro da capela do hospital de São Egídio, havia um pequeno retábulo de madeira, obra de Cosimo, conhecido como O triunfo da luz. O mestre florentino deu ao seu discípulo a tarefa de copiar a obra e gravá-la na madeira com os formões resplandecentes. A gravura era a mais completa e a mais complexa das técnicas; combinava o desenho, o entalhe e a pintura. Sem ter as três dimensões da escultura, a figura devia imitar a mesma profundidade; sem contar com a vantagem da cor, devia apresentar a impressão das tonalidades somente com o uso da tinta preta e o fundo branco do papel. Os enormes olhos negros de Pietro quase saltaram das órbitas quando ouviu a encomenda do mestre. Um sorriso involuntário instalou-se no seu rosto, e o coração lutava para sair do peito. Além disso, aquela era uma demonstração de confiança, já que o menor descuido no uso dos afiados formões podia causar um terrível acidente. Sem dúvida, era um prémio muito maior do que podia esperar por sua paciência. Em poucos dias, o trabalho estava terminado. Francesco Monterga estava maravilhado. O resultado foi surpreendente: a gravura não só fazia justiça ao original, como podia-se dizer que, somente com o uso da tinta negra, emanava uma profundidade e uma subtileza ainda superiores. Mas nem Pietro, nem Francesco Monterga imaginavam que aquelas quatro tábuas mudariam o curso das suas vidas.
Junto à fossa rectangular que com cada nova porção de terra ia devorando os restos corrompidos daquele que até pouco tempo apresentava o aspecto de um efebo, Francesco Monterga não podia evitar uma caótica sucessão de recordações. Da mesma forma que a evocação de um filho remete à lembrança do pai, Francesco Monterga pensava agora no seu próprio mestre, Cosimo Verona. Com ele havia aprendido tudo o que sabia e dele havia herdado, também, tudo o que ignorava. E, de facto, Francesco Monterga parecia muito mais obcecado por todos os mistérios que não conseguia desvelar do que pelo punhado de certezas de que era dono. Mas o que mais o atormentava, o que nunca podia se perdoar era a vergonha de ter permitido que o seu mestre morresse na prisão, onde fora parar por causa das dívidas que tinha. Preso, velho, cego e na mais absoluta indigência, nenhum discípulo, incluindo o próprio Monterga, teve a generosidade de pagar aos seus credores e tirá-lo da prisão. Mas o velho mestre Da Verona, longe de converter-se num misantropo corroído pelo ressentimento, conservou, até ao dia da sua morte, a mesma filantropia que sempre o guiou. Teve até a imensa generosidade de deixar nas mãos do, na época, jovem Francesco Monterga o seu mais valioso tesouro: o tratado Diversarum Artium Schedula. Sem dúvida, aquele manuscrito do século IX excedia com vantagens o montante de sua dívida, mas Cosimo da Verona nunca ia permitir que acabasse nas mãos miseráveis de um ganancioso. Antes disso, preferia morrer na sua cela. E assim o fez. Segundo Cosimo Verona havia revelado a Francesco Monterga no dia em que lhe confiara o tratado, aquele manuscrito continha o segredo mais procurado pelos pintores de todos os tempos, aquele mistério pelo qual qualquer artista daria a sua mão direita ou, até, o dom mais valioso para um pintor: a sua visão. Nesse manuscrito, estava o valioso Secretus coloris in status purus, o mítico segredo das cores em estado puro. No entanto, quando Francesco Monterga leu com avidez o tratado e releu várias vezes o último capítulo, Coloribus et Artibus, longe de encontrar, como esperava, a mais preciosa das revelações, deparou-se com uma inesperada surpresa. Em lugar de uma explicação clara e sucinta desse segredo, não havia nada mais que um longo fragmento de Os livros da ordem, de Santo Agostinho, em cujas linhas se intercalava uma série de números sem arranjo aparente e sem nenhuma ordem. Durante mais de quinze anos, Francesco Monterga tentou decifrar o enigma sem conseguir elucidar sentido algum. O mestre guardava o manuscrito a sete chaves. O único a quem revelou a existência do tratado foi Pietro della Chiesa.
O seu discípulo havia aprendido o ofício rapidamente. O precoce talento que aquela distante primeira gravura revelava era uma pálida antecipação do seu potencial. Em doze anos de estudo junto ao seu mestre, segundo todas as opiniões, havia superado Taddeo Gaddi, o mais conhecido aluno de Giotto, que permaneceu vinte e quatro anos com o célebre pintor». In Federico Andahazi, O Segredo dos Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.

Cortesia de L&PM Pocket/JDACT