segunda-feira, 29 de outubro de 2018

O Faraó Negro. Christian Jacq. «Conduz à pior das mortes, a da consciência. O que tencionas fazer? Implorei a Amon que iluminasse o meu caminho e ele respondeu-me»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) Piankhi imobilizou-se em frente de um enorme leão de calcário, cujos traços eram de uma extrema delicadeza. Na Núbia, Amon gostava de tomar a forma dessa fera, porque o nome do leão em hieróglifos era mai, aquele que vê. E nem o homem que se escondia no canto de um compartimento escuro escapava ao olhar do Criador. Na base da estátua, uma inscrição: O deus que reconhece o seu fiel, Aquele cuja aproximação é doce e vem ao encontro do que a implorou. Por cima da fera de pedra, um baixo-relevo evocava a oferenda do arco. O senhor divino abrira o caminho: era necessário continuar a lutar.
O fim da tarde era de uma inefável doçura. Era o momento em que os pastores tocavam flauta, em que os escribas poisavam os pincéis, em que as donas de casa concediam finalmente repouso a si próprias, contemplando o sol poente. A faina terminava, as fadigas do dia eram esquecidas durante esses instantes mágicos que os velhos sábios consideravam a expressão da plenitude. Quando Piankhi penetrou no quarto da sua esposa principal, mergulhado na obscuridade, julgou a princípio que ela estava ausente; depois viu-a na varanda, absorvida pelo espectáculo único e sempre renovado que lhe ofereciam os últimos clarões do astro da vida. Com trinta e cinco anos, Abilé estava no auge do seu esplendor. Alta, esguia, de rosto ovalado semelhante ao de Nefertiti e pele acobreada, tinha um porte real. Piankhi afastara as pretendentes oficiais para desposar aquela filha de um sacerdote sem fortuna mas especialista dos rituais egípcios e que soubera transmitir-lhe os seus conhecimentos. O tempo não tinha qualquer efeito sobre a sumptuosa núbia. Pelo contrário, a maturidade embelezara-a e aperfeiçoara-a e as mais belas sedutoras de Napata tinham renunciado a desafiá-la. Como única indumentária, Abilé envergava uma longa camisa de linho transparente. Soltara os cabelos perfumados e deixava que os últimos fulgores do poente dançassem sobre o seu corpo de deusa. Quando a noite se estendeu sobre o reino de Piankhi, voltou-se para vestir mais qualquer coisa. Foi então que o viu. Estás aqui há muito tempo? Não ousei interromper a tua meditação. Tomou-a apaixonadamente nos braços, como se tivessem estado separados há longos meses. Mesmo que estivesse furiosa com ele, Abilé não teria conseguido resistir à sua magia. Sentir-se protegida, amada por aquele rei simultaneamente forte e sensível, enchia-a de uma alegria que as palavras não eram capazes de descrever. A caçada foi boa? A corte não terá falta de carne... Mas isso não a impedirá de murmurar. Tens receio dela? Quem negligenciar uma conspiração não merecerá reinar. Abilé poisou a face no ombro de Piankhi. Uma conspiração... É assim tão grave? Estará a rainha do Egipto mal informada? Julgava que esses rumores não tinham fundamento. Não é a opinião de Cabeça-fria. Cabeça-fria... Dás sempre ouvidos aos conselhos desse escriba? Censuras-me por isso? Abilé afastou-se de Piankhi.
Tens razão, meu amor. Cabeça-fria não te trairá. Uma das tuas esposas secundárias, alguns sacerdotes invejosos, uma dezena de cortesãos estúpidos e um ministro demasiado ambicioso... Como levá-los a sério, quando reinas há vinte anos e o mais humilde dos teus súbditos se deixaria matar por ti! A vaidade é um veneno incurável, Abilé. Conduz à pior das mortes, a da consciência. O que tencionas fazer? Implorei a Amon que iluminasse o meu caminho e ele respondeu-me». In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.
                     
Cortesia de BertrandE/JDACT