«O perigo rondava, obsessivo. Desde a
morte de Ramsés o Grande, depois de sessenta e sete anos de reinado, o Lugar de
Verdade vivia mergulhado na angústia. Situado na margem ocidental de Tebas, a
aldeia secreta e fechada dos artesãos, cujo papel principal consistia em
escavar e decorar os túmulos dos reis e rainhas, interrogava-se sobre a sua
sorte. No final dos setenta dias de mumificação do ilustre defunto, que
decisões tomaria o novo faraó, Merneptah, de sessenta e cinco anos? Filho de
Ramsés, passava por ser um homem autoritário, justo e severo; mas saberia fazer
abortar as inevitáveis conspirações e desembaraçar-se dos intrigantes que
desejavam ocupar o trono dos vivos e apoderar-se das Duas Terras, o Alto e o
Baixo Egipto? Ramsés o Grande tinha sido o generoso protector do Lugar de Verdade
e da confraria dos artesãos, que dependia directamente do rei e do
primeiro-ministro, o vizir; possuía o seu próprio tribunal e dispunha de um
fornecimento quotidiano de alimentos. Liberto de preocupações materiais, podia
consagrar-se à sua obra vital para a sobrevivência espiritual do país.
Encarregado da segurança da aldeia na
qual não tinha o direito de penetrar, o chefe Sobek perdera o sono. Armado com
uma espada, uma lança e um arco, percorria constantemente o território colocado
sob a sua responsabilidade e verificava várias vezes por dia o dispositivo de
vigilância que instalara. É certo que os dois guardas da grande porta da aldeia
cumpriam a sua função habitual, um das quatro horas da manhã às quatro da tarde
e o outro das quatro horas da tarde às quatro horas da manhã; vigorosos, bons
manejadores dos cajados, impediam os profanos de penetrar no interior do
recinto onde viviam os artesãos do Lugar de Verdade e as famílias. E havia
também os cinco muros, ou seja, os fortins dispostos no caminho que conduzia à
aldeia. Mas essas medidas habituais não bastavam a Sobek, um grande núbio
atlético cujo rosto era marcado por uma cicatriz sob o olho esquerdo; ordenara
aos seus homens que estivessem permanentemente de atalaia nas colinas dos
arredores, que vigiassem os caminhos que conduziam ao Ramesseum, o Templo dos
Milhões de Anos de Ramsés o Grande, e os carreiros que iam dar aos Vales dos
Reis e das Rainhas.
Se surgissem perturbações graves, os
amotinados atacariam o Lugar de Verdade onde, segundo os rumores, os artesãos eram capazes de produzir
fabulosas riquezas e mesmo de transformar cevada em ouro. Sem a protecção do
Faraó, o que seria da modesta comunidade onde trabalhavam trinta e dois
artesãos, distribuídos na tripulação da direita e na tripulação da esquerda, do
navio ao qual era comparada a aldeia? Sobek talvez fosse o seu último defensor,
mas não fugiria e resistiria até ao fim. Embora sendo do exterior, o guarda
acabara por afeiçoar-se à maior parte dos habitantes que tinha o dever de proteger;
sem ser ele próprio um artesão e sem conhecer os seus segredos, tinha no
entanto o sentimento de participar na sua aventura e não conseguia imaginar a
sua existência longe deles.
Era por isso que o afligia um outro
tormento: não se ocultaria um assassino no seio da confraria e não ameaçaria a
existência do mestre-de-obras Néfer o Silencioso, outrora injustamente acusado
por uma carta anónima e depois ilibado do crime cometido na pessoa de um
guarda? O chefe Sobek não conseguira identificar nem o culpado nem o autor da
missiva e perguntava a si mesmo se não se trataria de um colega de Néfer,
ciumento da sua ascensão. Mas o guarda tinha outra pista a seguir, pois
desconfiava que Abri, o administrador-principal da margem oeste de Tebas,
estava metido numa conspiração que ameaçava destruir o Lugar de Verdade.
Infelizmente, o desaparecimento de Ramsés o Grande arriscava-se a alterar a situação
a ponto de a tornar incontrolável. Como chefe da equipe da direita, Néfer tinha
o dever de fazer o que é luminoso no lugar de luz, de traçar os planos e
distribuir o trabalho em função das competências de cada um. E descansavam
sobre os seus ombros responsabilidades ainda mais pesadas desde o recente
desaparecimento de Kaha, o chefe da equipa da esquerda, ao qual sucederia o
filho espiritual, Hai, sem experiência e grande admirador de Néfer, considerado
como o verdadeiro chefe da confraria. Até mesmo Kenhir, o velho escriba do
Túmulo, representante do poder central, o tratava com deferência; o alto
funcionário encarregado de gerir correctamente a confraria que usava o nome
simbólico de Grande e Nobre Túmulo dos Milhões de Anos a Ocidente de Tebas,
reconhecera em Néfer um mestre-de-obras excepcional, cuja autoridade era
incontestável. Mas seria Néfer o Silencioso capaz de lutar contra as forças das
trevas que atacavam o Lugar de Verdade? Saberia ele, o capitão da equipa dos
homens do interior, tomar consciência da gravidade do perigo e teria os meios
para lhe fazer face? Preso à realização da obra segundo a regra que tinha sido
aplicada pelos seus predecessores, Néfer talvez tivesse esquecido a crueldade e
a avidez do mundo exterior. Bastaria a sua magia pessoal para afastar a
desgraça?» In Christian Jacq, A Pedra da Luz, A Mulher
Sábia, 1995(?), Bertrand Brasil, ISBN 978-852-860-772-7.
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