segunda-feira, 29 de outubro de 2018

A Pedra da Luz. A Mulher Sábia. Christian Jacq. «Sem a protecção do Faraó, o que seria da modesta comunidade onde trabalhavam trinta e dois artesãos, distribuídos na tripulação da direita e na tripulação da esquerda, do navio ao qual era comparada a aldeia?»

jdact e cortesia de wikipedia

«O perigo rondava, obsessivo. Desde a morte de Ramsés o Grande, depois de sessenta e sete anos de reinado, o Lugar de Verdade vivia mergulhado na angústia. Situado na margem ocidental de Tebas, a aldeia secreta e fechada dos artesãos, cujo papel principal consistia em escavar e decorar os túmulos dos reis e rainhas, interrogava-se sobre a sua sorte. No final dos setenta dias de mumificação do ilustre defunto, que decisões tomaria o novo faraó, Merneptah, de sessenta e cinco anos? Filho de Ramsés, passava por ser um homem autoritário, justo e severo; mas saberia fazer abortar as inevitáveis conspirações e desembaraçar-se dos intrigantes que desejavam ocupar o trono dos vivos e apoderar-se das Duas Terras, o Alto e o Baixo Egipto? Ramsés o Grande tinha sido o generoso protector do Lugar de Verdade e da confraria dos artesãos, que dependia directamente do rei e do primeiro-ministro, o vizir; possuía o seu próprio tribunal e dispunha de um fornecimento quotidiano de alimentos. Liberto de preocupações materiais, podia consagrar-se à sua obra vital para a sobrevivência espiritual do país.
Encarregado da segurança da aldeia na qual não tinha o direito de penetrar, o chefe Sobek perdera o sono. Armado com uma espada, uma lança e um arco, percorria constantemente o território colocado sob a sua responsabilidade e verificava várias vezes por dia o dispositivo de vigilância que instalara. É certo que os dois guardas da grande porta da aldeia cumpriam a sua função habitual, um das quatro horas da manhã às quatro da tarde e o outro das quatro horas da tarde às quatro horas da manhã; vigorosos, bons manejadores dos cajados, impediam os profanos de penetrar no interior do recinto onde viviam os artesãos do Lugar de Verdade e as famílias. E havia também os cinco muros, ou seja, os fortins dispostos no caminho que conduzia à aldeia. Mas essas medidas habituais não bastavam a Sobek, um grande núbio atlético cujo rosto era marcado por uma cicatriz sob o olho esquerdo; ordenara aos seus homens que estivessem permanentemente de atalaia nas colinas dos arredores, que vigiassem os caminhos que conduziam ao Ramesseum, o Templo dos Milhões de Anos de Ramsés o Grande, e os carreiros que iam dar aos Vales dos Reis e das Rainhas.
Se surgissem perturbações graves, os amotinados atacariam o Lugar de Verdade onde, segundo os rumores, os artesãos eram capazes de produzir fabulosas riquezas e mesmo de transformar cevada em ouro. Sem a protecção do Faraó, o que seria da modesta comunidade onde trabalhavam trinta e dois artesãos, distribuídos na tripulação da direita e na tripulação da esquerda, do navio ao qual era comparada a aldeia? Sobek talvez fosse o seu último defensor, mas não fugiria e resistiria até ao fim. Embora sendo do exterior, o guarda acabara por afeiçoar-se à maior parte dos habitantes que tinha o dever de proteger; sem ser ele próprio um artesão e sem conhecer os seus segredos, tinha no entanto o sentimento de participar na sua aventura e não conseguia imaginar a sua existência longe deles.
Era por isso que o afligia um outro tormento: não se ocultaria um assassino no seio da confraria e não ameaçaria a existência do mestre-de-obras Néfer o Silencioso, outrora injustamente acusado por uma carta anónima e depois ilibado do crime cometido na pessoa de um guarda? O chefe Sobek não conseguira identificar nem o culpado nem o autor da missiva e perguntava a si mesmo se não se trataria de um colega de Néfer, ciumento da sua ascensão. Mas o guarda tinha outra pista a seguir, pois desconfiava que Abri, o administrador-principal da margem oeste de Tebas, estava metido numa conspiração que ameaçava destruir o Lugar de Verdade. Infelizmente, o desaparecimento de Ramsés o Grande arriscava-se a alterar a situação a ponto de a tornar incontrolável. Como chefe da equipe da direita, Néfer tinha o dever de fazer o que é luminoso no lugar de luz, de traçar os planos e distribuir o trabalho em função das competências de cada um. E descansavam sobre os seus ombros responsabilidades ainda mais pesadas desde o recente desaparecimento de Kaha, o chefe da equipa da esquerda, ao qual sucederia o filho espiritual, Hai, sem experiência e grande admirador de Néfer, considerado como o verdadeiro chefe da confraria. Até mesmo Kenhir, o velho escriba do Túmulo, representante do poder central, o tratava com deferência; o alto funcionário encarregado de gerir correctamente a confraria que usava o nome simbólico de Grande e Nobre Túmulo dos Milhões de Anos a Ocidente de Tebas, reconhecera em Néfer um mestre-de-obras excepcional, cuja autoridade era incontestável. Mas seria Néfer o Silencioso capaz de lutar contra as forças das trevas que atacavam o Lugar de Verdade? Saberia ele, o capitão da equipa dos homens do interior, tomar consciência da gravidade do perigo e teria os meios para lhe fazer face? Preso à realização da obra segundo a regra que tinha sido aplicada pelos seus predecessores, Néfer talvez tivesse esquecido a crueldade e a avidez do mundo exterior. Bastaria a sua magia pessoal para afastar a desgraça?» In Christian Jacq, A Pedra da Luz, A Mulher Sábia, 1995(?), Bertrand Brasil, ISBN 978-852-860-772-7.

Cortesia deBertrandB/JDACT