Cortesia
de wikipedia e jdact
A
Filha de Isis
O
primeiro pergaminho. Calor. Vento
«(…)
E se um escorpião estiver pronto para picar alguém? Suponhamos que no ombro de
Pompeu tenha um escorpião enorme, vermelho, com o aguilhão levantado. Posso
avisá-lo? Eu preciso saber todas as regras. Não seria rude se eu não avisasse?
Mesmo que seja um assunto tão desagradável? Ela pareceu confusa. Bom, acho
que... Ah, não vai ter um escorpião no ombro de Pompeu! Tu, hein! Que criança
irritante, sempre pensando no que não deve, mas ela disse isso com um tom
carinhoso. Pelo menos vamos esperar que não tenha um escorpião para perturbar
Pompeu, ou qualquer outra coisa para estragar o seu bom humor. Não posso usar
um diadema?, perguntei. Não! De onde tirou esta ideia? Você não é uma rainha. Não
há diademas para princesas? Deveríamos usar alguma coisa na nossa cabeça. Os
romanos não usam os louros? E os atletas também. Ela empinou a cabeça, como
sempre fazia quando estava se concentrando. Acho que o melhor ornamento para
uma menina são os seus cabelos. E os seus são lindos. Por que estragar pondo
alguma coisa na cabeça? Ela cuidava com esmero os meus cabelos, lavando-os com
água da chuva perfumada e penteando-os com pentes de marfim. Ela ensinou-me a orgulhar-me
deles. Mas o que eu mais queria era usar alguma coisa especial naquela noite. Mas
devia ter alguma coisa para nos identificar como a família real. Minhas irmãs...
Suas irmãs são muito mais velhas e para elas é adequado. Quando tiver dezassete
anos, ou até mesmo quinze como Berenice, poderá usar esse tipo de coisa. Tem
razão, fingi concordar. Deixei-a pentear os meus cabelos e prendê-los para trás
com uma presilha. Depois falei: agora que minha testa está tão limpa, nem mesmo
uma faixa? Uma faixa pequena, discreta, estreita. Sim, seria ideal para mim.
Ela riu. Menina, menina, menina! Por que não fica contente de deixar as coisas
correrem o seu curso? Mas pude ver que ela estava a ponto de ceder. Talvez uma
pequena faixa de ouro. Mas quero que a use para se lembrar do seu lugar como
princesa a noite inteira. Mas é claro, prometi. Não vou fazer nada grosseiro,
nem mesmo se um romano arrotar ou derramar alguma coisa, ou até mesmo se roubar
uma colher de ouro escondida no guardanapo, vou fingir que não vi. Isto pode
até ver, admitiu. Estão tão esfomeados por ouro que babam quando vêem. Ainda
bem que as obras de arte no palácio são grandes demais para ser enfiadas numa
toga, senão algumas delas desapareceriam pela manhã.
Eu
já tinha estado no salão de banquetes, mas apenas quando vazio. A sala enorme,
que tomava um andar inteiro de um dos palácios (havia muitos palácios na área
real) e se abria para a escadaria com vista para o porto. Para mim sempre
pareceu uma caverna reluzente. O seu piso lustroso reflectia a minha imagem
quando o atravessava correndo, e as fileiras de colunas mostravam a minha
silhueta quando passava por elas. Acima, no alto, o tecto se perdia nas
sombras. Mas nesta noite..., a caverna brilhava com as luzes, tanto que pude
ver pela primeira vez, muito acima da minha cabeça, as vigas banhadas a ouro
que sustentavam o tecto. E o barulho! O ruído da multidão, coisa que se
tornaria comum para mim, atacou os meus ouvidos como uma pancada. O salão
inteiro estava repleto de gente, tantas pessoas que eu não pude parar de olhar.
Nós, a família real, estávamos parados no topo de uma escadaria pequena antes
de entrarmos, e eu queria segurar na mão do meu pai e perguntar se todos os mil
convidados já haviam chegado. Ele estava à minha frente e, ao seu lado, a minha
madrasta, e não houve oportunidade. Esperamos as trombetas soarem anunciando a nossa
entrada. Eu olhava tudo atentamente, procurando ver os romanos. Quais seriam os
romanos? Metade das pessoas usava roupas comuns, soltas, e alguns deles tinham
barbas. Mas os outros..., estavam de barba feita, tinham cabelos curtos e
usavam uma capa volumosa e repleta de pregas (que para mim parecia um lençol)
ou uniformes militares formados por peitorais e saiotes de tiras de couro. Com
certeza eram os romanos. Assim, os restantes deveriam ser egípcios e gregos
alexandrinos. As trombetas soaram do outro lado do salão. O pai não se moveu, e
logo vi por quê. As trombetas anunciavam a entrada de Pompeu e da comitiva.
Enquanto caminhavam em fila para o centro do salão, pude observar as insígnias
de um general romano da mais alta ordem. O peitoril simples fora substituído
por um de ouro puro, artisticamente decorado. A sua capa era púrpura e não
vermelha, e ele usava um tipo diferente de botas fechadas. Era uma visão
esplêndida. E o próprio Pompeu? Fiquei decepcionada de ver que ele era apenas
um homem comum, com feições suaves. Não havia nada nele que fosse mais
impressionante do que seu uniforme. Em cada lado, estavam outros oficiais, com
rostos duros e mais intransigentes do que o dele, e serviam para ressaltá-lo
ainda mais. Agora mais uma vez as trombetas soaram, e era nossa vez de descer a
escadaria para que o meu pai pudesse cumprimentar os seus hóspedes e lhes dar
as boas-vindas oficialmente. Todos os olhos se viraram na sua direcção no
momento em que ele descia cautelosamente, arrastando seu manto real. Tomei todo
o cuidado para não pisar nele. Os dois homens se encontraram cara a cara; como
era mais baixo e menor, o meu pai! Perto do gigante Pompeu, parecia quase
frágil. Seja bem vindo a Alexandria, meu nobre imperador Caio Pompeu Magno. Nós
o saudamos e celebramos as suas vitórias e pedimos que nos conceda a honra da
sua presença aqui esta noite, disse. A sua voz era agradável e normalmente
soava bem, mas hoje faltava-lhe força. Ele devia estar nervoso demais, e claro
que isto me deixou nervosa também, por mim e por ele. Pompeu falou alguma
coisa, mas o seu grego tinha um sotaque tão pesado que ficou difícil para que
eu compreendesse. Talvez o meu pai tenha entendido, pelo menos fingiu que sim.
Mais cumprimentos e mais apresentações entre os dois lados se seguiram. Fui
apresentada. Ou será que Pompeu foi apresentado a mim? Qual é a ordem correta?,
sorri e fiz um pequeno gesto de cabeça. Sabia que princesas, para não falar em
rainhas e reis!, nunca se curvam para ninguém, mas rezei para que isso não o ofendesse.
Ele provavelmente não sabia dessas coisas por ser de Roma, onde não se tem
reis. Em vez de seu gesto anterior, um sorriso tépido, ele de repente se curvou
e olhou directo no meu rosto, os seus olhos azuis redondos no mesmo nível dos
meus. Que criança encantadora!, disse, no seu grego estranho. As crianças do
rei participam dessas coisas desde o berço? Virou-se para o meu pai, que
parecia ter perdido a compostura. Senti que ele se tinha arrependido de ter me
deixado comparecer; não queria fazer nada que pudesse chamar uma atenção que
não fosse satisfatória para nós. Apenas depois de completarem os sete anos, ele
improvisou na hora. Eu ainda não tinha chegado aos sete anos, mas Pompeu não
saberia nunca». In Margaret George, As Memórias de Cleópatra, 1997, tradução de Lídia
Zanon, Geração Editorial, 2000-2001, Edições Chá das Cinco, 2007, IBSN-
978-989-803-200-3.
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