«(…) Com
o passar dos anos, Pietro havia se transformado nm jovem magro, alegre e
disciplinado. Tinha um olhar inteligente e um sorriso afável e claro. O seu
cabelo crespo e loiro contrastava com aqueles olhos negros, profundos e cheios
de perguntas. Falava com uma voz suave e serena, e tinha herdado aquele jeito
levemente amaneirado do mestre, mas sem a sua afectação. Conservava os mesmos traços que tinha quando menino,
agora modificados pela puberdade, e conduzia a sua nada usual beleza com certa
timidez. À sua queda natural para o desenho havia somado o estudo metódico da
geometria e da matemática, as proporções áureas, a anatomia e a arquitectura.
Era possível dizer que era um verdadeiro florentino. O manejo impecável da
perspectiva e dos escorços (representação de uma figura em proporções menores
do que ao natural) revelava uma perfeita síntese entre a sensibilidade nascida
do coração e o cálculo minucioso das fórmulas aritméticas. Francesco Monterga
não podia dissimular um orgulho que lhe enchia o peito diante dos comentários
elogiosos de doutos e leigos sobre o talento do seu discípulo. Mas, como
correspondia à sua natureza austera, despojada de arrogância, Pietro conhecia as
suas próprias limitações; podia admitir que, com muitos esforços, tinha
alcançado o domínio das técnicas de desenho e o manejo da perspectiva, mas, na
hora de aplicar as cores, a sua serenidade desaparecia diante da tela, e o seu
pulso, seguro com o lápis, tornava-se vacilante e indeciso com o pincel. E
mesmo que as suas tábuas não revelassem as suas incertezas íntimas, as cores
eram para ele um mistério indecifrável. Se todas as virtudes do futuro pintor
que Pietro exibia eram obra do paciente ensino do seu mestre, com a mesma
justiça era preciso admitir que as fissuras na sua formação eram
responsabilidade de Francesco Monterga. E, a bem da verdade, quem sabe sem
perceber, o mestre florentino havia instalado no espírito do seu discípulo as suas
próprias carências e obsessões.
Mesmo sendo um homem velho, Francesco Monterga não queria
morrer sem poder desvendar o segredo das cores. Quem sabe o seu aprendiz,
jovem, inteligente e profundamente inquieto, poderia ajudá-lo a resolver o
enigma. Juntos, trancados na biblioteca, passavam
noites inteiras relendo e estudando, uma e outra vez, cada um dos dígitos que
se misturavam com o texto de Santo Agostinho e que não pareciam ter uma lógica
inteligível. No momento da tragédia, Pietro della Chiesa estava muito perto de
completar a sua formação e converter-se, por fim, num pintor. E, sem dúvida, um
dos mais brilhantes que Florença gerou. De modo que todos podiam compreender o
desconsolo, em alguns momentos patético, de Monterga. Era possível dizer que o
mestre florentino via como se evaporavam diante de seus olhos as esperanças de
vingar as suas próprias frustrações com a consagração de seu filho de ofício.
Enquanto assistia à terrível cerimónia dos
coveiros atirando terra húmida sobre o triste caixão, Francesco Monterga
mantinha um ar abstraído, de quem se concentra profundamente nos seus
pensamentos. O prior Severo Setimio, com a cabeça baixa e as mãos cruzadas
sobre o peito, com os seus pequenos olhos de ave movendo-se de um lado a outro,
examinava cada um dos presentes. Sempre fora a sua vocação suspeitar. E era
isso exactamente o que fazia. A sua presença nos funerais de Pietro della
Chiesa não tinha o propósito de elevar orações pela alma do morto nem de
render-lhe homenagens póstumas. Se durante os primeiros anos de Pietro o antigo
inspetor do arcebispado tinha-se convertido no seu mais temível pesadelo,
agora, dezasseis anos depois, parecia disposto a persegui-lo até o além. Quis o
destino que a comissão ducal constituída para investigar a morte do jovem
pintor fosse presidida pelo velho inquisidor infantil Severo Setimio. Mais
calvo e um pouco curvado, ainda conservava o mesmo
olhar desconfiado. O prior não manifestava nenhum pesar; ao contrário, as suas
antigas suspeitas com relação ao preferido do abade Verani pareciam ter sido
aprofundadas com o passar do tempo. Talvez por não tido a sorte de poder mandar
o pequeno Pietro para a casa dei morti, por causa, quem sabe, do velho desejo
não realizado, por mais paradoxal que pudesse parecer, todas as suas suspeitas
dirigiam-se à própria vítima. Os primeiros interrogatórios que fez giravam em
torno de uma pergunta não-formulada: que acto terrível havia cometido o jovem
discípulo para ocasionar este final?» In Federico Andahazi, O Segredo dos
Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.
Cortesia de L&PM
Pocket/JDACT