quarta-feira, 10 de outubro de 2018

A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Umberto Eco. «Paola pôs-se a rir. Agora me lembro, desculpe. Claro, era uma história que aprendeu quando era pequeno»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Sim, mas é uma coisa que acontece no fliperama e você é..., era louco por flíper, como uma criança. Sei o que é um fliperama. Mas não sei quem sou eu, entende? A névoa cobre o vale Padano. A propósito, onde estamos? No vale Padano. Vivemos em Milão. Nos meses de Inverno, da nossa casa vê-se a névoa no parque. Vive em Milão, é um livreiro e tem um antiquário de livros. A maldição do faraó. Se sou Bodoni e me baptizaram Giambattista só podia acabar assim. Acabou da forma certa. É muito bem considerado no seu trabalho, não somos milionários mas vivemos bem. Vou ajudá-lo, pouco a pouco vai conseguir recuperar-se. Deus meu, quando eu penso, poderia nem ter acordado; os médicos foram óptimos, pegaram-no a tempo. Meu amor, posso dar-lhe as boas-vindas? Parece que é a primeira vez que me vê. Pois bem, se eu o estivesse encontrando agora, pela primeira vez, casaria da mesma maneira. Está bem?
Você é um amor. Preciso de si. É a única que me pode contar dos meus últimos trinta anos. Trinta e cinco. Nos conhecemos na universidade, em Turim, você estava para se formar e eu era a caloira perdida nos corredores do Palácio Campana. Perguntei onde era uma certa sala, logo ficou de olho e seduziu a colegial indefesa. Depois, entre uma coisa e outra, eu era jovem demais e você passou três anos no estrangeiro. Em seguida, fomos morar juntos dizendo que era uma experiência, mas no final fiquei grávida e nos casámos, afinal você era um cavalheiro. Não, desculpe, também porque nos amávamos, de verdade, e você gostava da ideia de ser pai. Coragem, pai, vou fazê-lo lembrar de tudo, vai ver. A não ser que seja tudo um complô, que eu me chame Felicino Grimaldelli e seja arrombador, que você e Gratarolo estejam me contando um monte de mentiras, sei lá, talvez porque sejam do serviço secreto e precisem construir uma nova identidade para me mandar espionar além do Muro de Berlim, Ipcress Files, e...
Não existe mais Muro de Berlim, foi derrubado e o império soviético está indo pelo ralo... Jesus, vira a cabeça um momentinho e olha o que aprontam. Está bem, eu estava brincando, confio em si. O que são os stracchini de Broglio? O quê? O stracchino é um queijo pastoso, mas esse é o nome que dão no Piemonte, aqui em Milão se chama crescenza. O que há com os stracchini? Foi quando eu estava apertando o tubo de pasta de dente. Espere. Havia um pintor chamado Broglio, que não conseguia manter-se com seus quadros mas não queria trabalhar argumentando que tinha uma neurose. Parece que era uma desculpa para ser sustentado pela irmã. Finalmente os amigos lhe arranjaram um emprego numa empresa que fazia ou vendia queijos. Ele passava diante de uma grande pilha de stracchini, todos embrulhadinhos em papel-manteiga, e não resistia à tentação, por causa da neurose (dizia ele): pegava um por um e chac, esmagava fazendo o stracchino espirrar fora do embrulho. Depois de ter estragado uma centena de stracchini, foi despedido.
Tudo por culpa da neurose, dizia que para ele sgnaché i strachèn era um gozo irresistível. Por Deus, Paola, essa é uma lembrança de infância! Eu não perdi a memória das minhas experiências passadas?
Paola pôs-se a rir. Agora me lembro, desculpe. Claro, era uma história que aprendeu quando era pequeno. Mas que contava sempre, era como se diz uma peça do seu repertório, você divertia seus comensais com a história dos stracchini do pintor e eles a passavam adiante. No entanto, infelizmente, você não está recordando uma experiência sua, simplesmente sabe uma história que recitou muitas vezes e que para você virou (como dizer?) um bem público, como a história de Chapeuzinho Vermelho.
Você está-se a tornar indispensável para mim. Estou contente de que seja minha mulher. Agradeço-lhe por existir, Paola. Deus meu, um mês atrás você diria que isso é uma expressão kitsch de telenovela... Desculpe. Não consigo dizer nada que me venha do coração. Não tenho sentimentos, só ditos memoráveis. Pobre querido. Bem, essa também é uma frase feita. Cretino. Essa Paola gosta mesmo de mim. No dialecto milanês, esmagar os stracchini. Passei uma noite tranquila, sabe-se lá o que Gratarolo me pôs na veia. Despertei aos poucos, e acho que ainda estava de olhos fechados porque ouvi a voz de Paola que sussurrava, temendo me acordar: mas não poderia ser uma amnésia psicogénica?» In Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, 2004, Editora Record, ISBN 978-850-107-143-9.

Cortesia de Difel/ERecord/JDACT