«O
erro de cálculo foi fatal. Quando Michael Hepburn se virou, um segundo mais
tarde do que o necessário para evitar a facada em cheio, a ténue luz da luz lhe
proporcionou uma imagem vaga da figura na penumbra. Percebeu que a afiada
lâmina atravessou a fina casaca de brocado e sentiu a fria mordida do aço no
corpo. Uma dor aguda o invadiu, inclusive quando, de forma reflexa, deu um
golpe com o pé e ouviu o som surdo do pontapé. O assaltante grunhiu e recuou,
cambaleando pelo chão de pedra engordurado, mas não demorou a recuperar o
equilíbrio e lançou-se de novo sobre ele. Felizmente, dessa vez Michael não
estava desprevenido. Ele esquivou-se inclinando o corpo para trás e deixou que
o impulso do atacante o aproximasse o suficiente para lhe acertar um soco com a
mão direita. Como o beco pestilento estava muito escuro, em vez de acertá-lo em
pleno queixo, pegou de mau jeito num dos lados do pescoço. Ouviu-se um gemido
agudo e Michael aproveitou para dar outro pontapé no desconhecido, mas desta
vez, na entreperna. Jogo limpo era para quem se podia dar ao luxo da derrota. Isso
tinha ele aprendido em Espanha. Ter uma morte honrosa tudo bem, mas, na sua
opinião, viver era muito melhor, e não lhe ocorria nada mais sórdido do que
perder a vida num beco imundo de Londres. O atacante conseguiu esquivar-se do
pontapé, o que demonstrava que também ele se vira em mais de uma luta suja e
havia previsto o golpe, mas patinou no chão escorregadio e caiu como um saco de
batatas. Porém ele perdeu a faca, e enquanto se abaixava para reavê-la, Michael
viu a figura pôr-se de pé com dificuldade, dar meia volta e sair correndo. A
própria respiração dele abafou o estrondo dos pés correndo ao bater no chão.
Se não
fosse pela sensação morna e melada do sangue que ensopava a sua roupa, talvez
ele tivesse tentado caçar o homem para lhe arrancar alguma informação. Inferno,
resmungou, abrindo a casaca riscada para olhar o ferimento. A camisa branca de
linho já exibia um vivo tom de escarlate. Aquele mal parido, fosse lá quem
fosse, pretendia causar-lhe dano de verdade. A lâmina devia ter colidido com
uma costela, por isso, embora o ferimento sangrasse muito, Michael não
considerou que fosse grave. Ele já havia sido ferido o suficiente para saber
quando tivesse chegado o momento. Não
obstante, aquele ferimento não podia ter sido mais inoportuno. Tirou o relógio
do bolso do colete e semicerrou os olhos para poder ver a hora à escassa luz,
procurando ignorar o fedor de lixo que o rodeava. Já era muito tarde, mas ele
não podia voltar para casa naquele estado porque poderia encontrar alguém ainda
acordado. A enorme mansão estava cheia de parentes e convidados de todo o tipo.
Felizmente, tinha outras opções. Andou até onde o esperava o veículo que havia
alugado a preço de ouro. A carruagem ducal teria chamado muito a atenção
naquele lugar de negócios escusos e de contravenções, e albergues de telhados e
portas desmanteladas, indicativos da sordidez do entorno. Certamente ele estava
um pouco tonto quando chegou ao veículo. O cocheiro, um homem de rosto afilado
e barba desastrosa, alarmou-se ao vê-lo aparecer. Caramba, algum problema,
chefe? Está falando do sangue?, perguntou Michael com cinismo. Os bandidos
estão ficando cada vez mais atrevidos. O cocheiro teve a delicadeza de não
mencionar o quão tarde da noite era e o bairro de má reputação no qual se
encontravam. Com uma boa gorjeta, ele se esqueceria do que havia visto. Michael
deu-lhe um endereço, subiu no velho veículo e se instalou com muito cuidado no assento.
O trajecto foi um tanto quanto agitado, mas, felizmente, não muito longo; não
demoraram a sair daquele bairro horroroso e chegar a uma parte mais elegante, e
segura, de Londres. Tratava-se de uma quinta elegante, mas discreta, nos
arredores de Mayfair e, para seu alívio, via-se luz numa das janelas do andar
superior. Ele desceu resmungando uma palavra de agradecimento e acrescentou uma
quantidade substancial ao preço da viagem. Se me faz o obséquio, esqueça-se de
mim e do incidente.
A julgar
pelo semblante do homenzinho, decerto ele estava a pensar que as
excentricidades da aristocracia, embora impenetráveis, eram proveitosas e, após
assentir com a cabeça, voltou para o assento suspenso, incitou o esquálido
cavalo e o coche se afastou com grande estrépito. Apesar da hora, a porta da
elegante mansão foi aberta por um homem com uma cicatriz no rosto e semblante
impassível. Estava de camisolão e o cabelo escuro alvoroçado, o que indicava
que já se havia retirado para dormir. Eram quase da mesma estatura e, embora
lhe falasse com respeito, o olhar fixo com o qual olhava para Michael não era
sinal de comedimento. Afastou-se e o convidou a entrar. Senhor Marquês, entre
por favor. Michael entrou. Lamento tirá-lo da cama, Lawrence. Não precisa se
desculpar, senhor, em absoluto. Não fossem as gotas de sangue que caíam no
esplêndido piso de mármore branco e preto do vestíbulo, pareceria que estavam
trocando palavras corteses; mas Michael e Lawrence não eram amigos, apenas
companheiros. Lady Taylor está..., ocupada? Esta noite ela está completamente
só, milorde, disse Lawrence com ironia, examinando a casaca riscada de Michael.
Bom. Pelo menos ele não interromperia nada pessoal. Antónia não costumava falar
sobre os seus passatempos íntimos, e ele também nem perguntava. Mas ele
desconfiava que entre Lawrence e ela havia algo mais do que uma relação de
mordomo e senhora; em todo caso, isso não era da sua conta, pois nenhum dos
dois dissera nada sobre isso e ele preferia assim. Eram sócios, embora com uma
relação bem mais estreita do que o habitual, e Michael preferia separar os
negócios das questões pessoais. Se importaria de lhe comunicar que estou aqui? Ela
ficará encantada por recebê-lo, como de costume. Apesar dos ferimentos e das
desastrosas consequências, Michael arqueou uma sobrancelha, divertido pelo tom
insolente do jovem. Lawrence nem sequer pestanejou ao vê-lo chegar
ensanguentado no meio da noite; tampouco lhe fizera perguntas sobre o
ferimento. E jamais o faria, claro. Ele já havia visto coisas piores, e sabia
manter a boca bem fechada. No entanto, o palpável antagonismo era
significativo. Dali a pouco, Antónia andava para lá e para cá perto dele com o
sensual corpo envolto em seda e os lábios apertados à guisa de reprovação.
Estavam na alcova dela, que estendeu uma manta no chão para que o sangue não
manchasse o caríssimo tapete. Pingentes de seda dourado claro enfeitavam a cama
com dossel e as janelas estavam abertas para o jardim dos fundos.
Antónia
colocou a banqueta dourada do toucador em cima da manta e empurrou Michael
devagar para que se sentasse nela. Se bem me lembro, disse ela, puxando a camisa
de dentro dos calções, fazendo caso omisso para a careta de dor que ele fez, eu
lhe adverti que tivesse cuidado. A minha fonte disse-me que tinha informações
sobre Roget, de modo que aproveitei a ocasião e aceitei me encontrar com ele.
Além do mais, não me atacaram lá, mas quando eu estava voltando por aqueles
becos de má reputação para o coche de aluguer. E isso lhe surpreende? Quem mora
em bairros caros não costuma ter informações em primeira mão sobre assassinos e
traidores. Certo». In Emma Wildes, His Sinful Secret, 2010, Baror International, Random House
Mondadori, Megustaleer, 2011, ISBN- 978-840-138-431-8.
Cortesia de Megustaleer/JDACT