«(…) Se observamos o interdito,
se a ele nos submetemos, não temos mais consciência dele. Mas sentimos no
momento da transgressão si angústia sem a qual o interdito não existiria: é a
experiência do pecado. A experiência leva à transgressão realizada, à
transgressão bem sucedida que, sustentando o interdito, sustenta-o para dele tirar prazer. A experiência interior do
mutismo exige de quem a pratica uma sensibilidade bem maior ao desejo que leva
a infringir o interdito que à angustia que o funda. É a sensibilidade
religiosa, que liga
sempre estreitamente o desejo e o medo, o prazer intenso e a angústia. Os que
ignoram (ou que provam só furtivamente) os sentimentos de angústia, náusea e
horror comuns às jovens do século passado não são susceptíveis a isso, acontecendo
o mesmo com os que limitam tais sentimentos. Esses sentimentos nada têm de
doentio; mas são, na vida de um homem, o que é a crisálida para um animal
perfeito. A experiência interior do
homem é dada no instante em que, rompendo a crisálida, ele tem consciência de
se rasgar a si mesmo e não a resistência colocada de fora. O ultrapassar da consciência
objectiva, que as paredes da crisálida limitavam, está relacionado com essa mudança
radical.
O interdito ligado à morte
A oposição do mundo do trabalho ou da razão ao
mundo da violência.
De qualquer maneira, o homem
pertence a um e a outro desses dois mundos entre os quais a sua vida, por mais
que ele esteja atento, é dividida. O mundo do trabalho e da razão é a base da
vida humana, mas o trabalho não nos absorve inteiramente e, se a razão comanda,
nossa obediência nunca é sem limite. Com o seu trabalho, o homem edificou o mundo
racional, mas sempre subsiste nele um fundo de violência. A própria natureza é violenta
e, por mais comedidos que sejamos, uma violência pode-nos dominar de novo, que
não é mais a violência natural, a violência de um ser racional que tentou
obedecer, mas que sucumbe ao movimento que ele mesmo não pôde reduzir à razão.
Há na natureza e subsiste no homem um movimento que sempre excede os limites e que nunca
pode ser reduzido senão parcialmente. Em geral não podemos prestar contas desse
movimento. Ele é mesmo por definição aquilo que nada justificará jamais, mas
vivemos sensivelmente sob o seu poder: o universo onde vivemos não responde a
nenhum fim que a razão limita, e se tentamos fazê-la responder a Deus, não
fazemos senão associar insensatamente
o excesso infinito, em cuja presença está a nossa razão, a essa
mesma razão. Mas pelo excesso que nele existe, esse Deus, cujo sentido
gostaríamos de apreender, não pára, ao exceder esse sentido, de exceder os
limites da razão.
Na
nossa vida o excesso manifesta-se na medida em que a violência prevalece sobre
a razão. O trabalho exige um comportamento em que o cálculo do esforço, ligado
à eficácia produtiva, é constante. Ele exige uma conduta sensata, onde os
movimentos tumultuosos que se liberam na festa, e geralmente no jogo, não são
decentes. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não seríamos susceptíveis
ao trabalho, mas o trabalho introduz justamente a razão de refreá-los. Esses
movimentos dão aos que a eles sucumbem uma satisfação imediata: o trabalho, ao
contrário, promete aos que os dominam um lucro posterior, cujo interesse não
pode ser discutido, a não ser do ponto de vista do momento presente. Desde os
tempos mais remotos (o trabalho fundou o homem: os primeiros sinais da sua
existência são os instrumentos de pedra. Bem remotamente, parece que o
australopiteco, ainda longe da forma acabada com que hoje o representamos, deixou
tais instrumentos: ele viveu há cerca de um milhão de anos antes de nós, enquanto
o homem de Neandertal, ao qual remontam as primeiras sepulturas, não nos precede
senão de alguns cem mil anos), o trabalho introduziu uma pausa em cujo nome o
homem deixava de responder ao impulso imediato que comandava a violência do
desejo. É sem dúvida arbitrário sempre opor a abnegação, que está na base do trabalho,
a movimentos tumultuosos cuja necessidade não é constante. O trabalho começado
cria, entretanto, uma impossibilidade de responder a essas solicitações imediatas
que podem nos tornar indiferentes a resultados desejáveis mas cujo interesse relaciona-se
apenas com o futuro. A maior parte do tempo o trabalho é a ocupação de uma colectividade,
e a colectividade deve-se opor, no tempo reservado ao trabalho, aos movimentos
de excesso contagioso em que nada mais existe, a não ser o abandono imediato ao
excesso. Isto é, à violência. Da mesma forma, a colectividade humana, em parte
consagrada ao trabalho, define-se nos interditos,
sem os quais ela não se teria transformado neste mundo de trabalho que ela é essencialmente». In
Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa,
L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972-608-018-3.
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