terça-feira, 16 de outubro de 2018

O Livro dos Prazeres Proibidos. Federico Andahazi. «Não apresentava contusões visíveis nem ossos quebrados. O pano, que surgia do fundo da sua garganta, era a prova de que morrera asfixiada»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Começara a clarear; no entanto, as adoradoras do Mosteiro da Sagrada Canastra permaneciam em vigília como se a noite ainda não tivesse terminado. Diferentemente de outras madrugadas, o amanhecer não as encontrara no meio do habitual clima de sagrada libertinagem; ao contrário, impunha-se um silêncio feito de dor e tristeza, de medo e estupor. De dor. As velas dos castiçais não ardiam para celebrar os prazeres dionisíacos da vida, mas para acompanhar a angústia diante dos inesperados avatares da morte. Os habituais gemidos de satisfação provenientes dos aposentos haviam-se transformado, naquela madrugada, em soluços e prantos abafados. Todas as mulheres daquele peculiar prostíbulo haviam passado a noite velando os restos de Zelda. A sua beleza madura e a pele firme e perfeita semelhante à suavidade da porcelana eram lembranças difíceis de conciliar com os despojos que jaziam no caixão. O seu corpo fora encontrado pouco depois do crime, esticado de costas sobre a cama. As outras mulheres descobriram horrorizadas, embora não surpresas, o cadáver cuidadosamente esfolado. Não apresentava contusões visíveis nem ossos quebrados. O pano, que surgia do fundo da sua garganta, era a prova de que morrera asfixiada. Zelda era a terceira meretriz exterminada nos últimos meses. Não cabia a menor dúvida de que se tratava de uma mesma mão criminosa, que, com idêntica habilidade, primeiro asfixiava as suas vítimas e depois, sem objectivo aparente além de obter um prazer doentio, as esfolava. A primeira morte despertara nas outras mulheres um sentimento de espanto, angústia e vulnerabilidade. Foi um facto inusitado, uma sangrenta excepção na festiva rotina do bordel. A segunda não apenas agregou estupor e semeou o enigma e o medo, mas quebrou a rotina. A terceira transformou o medo em pânico, e a excepção em regra. O inesperado se converteu numa atormentada espera pela próxima fatalidade: qualquer uma poderia ser a próxima vítima; qualquer um poderia ser o assassino. O temor impedia as mulheres de notar que os crimes tinham, pelo menos, uma lógica: a sucessão de mortes estava relacionada com a idade das vítimas. A primeira era imediatamente mais velha do que a segunda, e a segunda do que a terceira. Não havia resposta para o motivo dos crimes pela simples razão de que ninguém conseguia sequer formular uma pergunta. Quanto à identidade do assassino, nenhuma das mulheres no bordel conseguia nem mesmo fazer uma conjectura. Os últimos clientes que solicitaram os serviços das mulheres mortas depois de serem atendidos foram acompanhados por elas até à porta e, tal como rezava o protocolo da casa, foram embora depois de gentis despedidas. De maneira que o assassino devia ter entrado nos aposentos de maneira furtiva. O medo não se apoderara apenas das prostitutas, mas também dos clientes. As notícias macabras espalhavam-se pela cidade, e a clientela diminuía conforme os assassinatos se multiplicavam, até que desapareceu quase por completo; os homens não apenas temiam pela vida, mas também pela reputação: de repente, todos os olhares se voltavam para o bordel. Todos, salvo o das autoridades, que não demonstravam muito interesse pelos assassinatos; pelo contrário, poderia dizer-se que a preguiça com que agiam deixava patente uma complacência velada: a vida de um punhado de put… não merecia uma investigação. Além disso, existia o risco de que uma sondagem revelasse que personagens muito poderosos visitavam o bordel assiduamente. O público rareava; os salões e os aposentos do outrora alegre Mosteiro da Sagrada Canastra agora estavam vazios, e um frio desconhecido tomara conta do lugar. A solidão, longe de oferecer segurança às mulheres, não fazia mais do que confrontá-las com a silenciosa espreita da morte. Apesar da quietude e de todas as precauções que haviam tomado, fechavam as portas e as janelas com trincos, não houve maneira de evitar que o incógnito assassino, depois dos primeiros dois crimes, voltasse a penetrar como uma sombra, matasse Zelda sem se fazer ouvir e fugisse sem ser percebido. O terror não se limitava às paredes do bordel. Quando a noite caía, as ruas ficavam desertas». In Federico Andahazi, O Livro dos Prazeres Proibidos, Editora Bertrand Brasil, 2013, ISBN 978-852-861-692-7.

Cortesia de EBertrandB/JDACT