domingo, 28 de outubro de 2018

A Pedra da Luz. Christian Jacq. «Deixem-me em paz, os dois. Este lugar não te pertence... Temos o direito de cá vir. Não me apetece ver-vos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Trabalhar a terra logo a seguir à cheia, semear, ceifar e colher, encher os celeiros, recear os gafanhotos, roedores e hipopótamos que devastam as culturas, irrigar, cuidar dos utensílios de lavoura, entrançar cordas durante a noite em vez de dormir, vigiar o gado e os animais de tiro, preocupar-se constantemente com as terras e não ter outro horizonte a não ser a qualidade do trigo e a boa saúde das vacas... Ardente não suportava mais aquela existência monótona. Sentado por baixo de um sicómoro, no limite entre os campos de cultura e o deserto, o rapaz aproveitava a sombra mas não conseguia adormecer nem saborear o repouso bem merecido antes de seguir para as pastagens familiares a fim de tratar dos bois. Aos dezasseis anos, Ardente, que media um metro e noventa e tinha a estatura de um colosso, não queria viver a existência de um camponês como o pai, o avô e o bisavô. Como todos os dias, vinha até àquele lugar tranquilo e, com o auxílio de um pedacinho de madeira que tinha talhado, desenhava animais na areia. Desenhar... Eis o que ele gostaria de fazer durante horas, depois dar cor e recriar um burro, um cão e mil outras criaturas! Ardente sabia observar. A sua visão entrava-lhe no coração e depois este último dava ordens à mão, que agia no entanto com absoluta liberdade para traçar os contornos de uma imagem mais viva do que a realidade quotidiana. O rapaz precisaria de papiros, de estiletes, de pigmentos... Mas o pai era agricultor e rira-lhe na cara quando o adolescente formulara as suas exigências. Havia um lugar, um único, onde Ardente poderia obter tudo aquilo que desejava: o Lugar de Verdade. Não se sabia nada do que se passava no interior dos muros da aldeia, mas lá estavam reunidos os maiores pintores e desenhadores do reino, os que eram autorizados a decorar o túmulo do Faraó.
Mas não havia qualquer hipótese para o filho de um camponês entrar naquela fabulosa confraria. No entanto, o rapaz não se podia impedir de sonhar com a felicidade daqueles que se podiam consagrar totalmente à sua vocação, esquecendo a mesquinhez do dia a dia. Então, Ardente, estás a aproveitar o bom tempo? O que acabava de assim se exprimir em tom irónico chamava-se Rustaud e tinha cerca de vinte anos. Alto, musculado, estava vestido apenas com um saiote curto de juncos entrançados. A seu lado, o seu pequeno irmão, Jarret o Gordo, de sorriso estúpido. Com quinze anos, pesava mais dez quilos do que o irmão mais velho por causa do número de bolos que engolia todos os dias. Deixem-me em paz, os dois. Este lugar não te pertence... Temos o direito de cá vir. Não me apetece ver-vos. A nós, apetece. Vais ter que te explicar. A propósito de quê? Como se não soubesses... Onde estavas na noite passada? Tomas-te por um polícia? Nati... Este nome não te diz nada? Ardente sorriu. Uma excelente recordação. Rustaud deu um passo na direcção de Ardente. Monte de lixo! Essa rapariga deve casar comigo... E tu, a noite passada, atreveste-te... Foi ela que me veio procurar. Mentes! Ardente levantou-se. Não suporto que me chamem mentiroso! Por tua causa, não casarei com uma virgem. E então? Se tiver alguma inteligência, Nati não casará contigo. Rustaud e Jarret o Gordo exibiram um chicote de cabedal. A arma era rudimentar mas perigosa. Paremos por aqui, propôs Ardente. Nati e eu passámos uns bons momentos juntos, é verdade, mas é a natureza que assim quer. Para te ser agradável, concordo em não tornar a vê-la. E, para ser franco, não sentirei a falta dela.
Vamos desfigurar-te, anunciou Rustaud. Com a tua nova cara, não seduzirás mais nenhuma rapariga. Não me importaria de dar um correctivo a dois imbecis, mas está calor e prefiro terminar a minha sesta. Jarret o Gordo lançou-se sobre Ardente com o braço direito levantado. De repente, o seu alvo apagou-se diante dele. Foi levantado, projectado no ar e caiu de cabeça para a frente de encontro ao tronco do sicómoro. Desmaiado, não se mexeu mais. Estupefacto durante um instante, Rustaud reagiu. Cortando o ar com o chicote, julgou que conseguia dilacerar o rosto de Ardente, mas o seu braço foi bloqueado pelo do jovem colosso. Um estalido sinistro pôs fim à curta luta. Com a omoplata deslocada, Rustaud largou o chicote de cabedal e fugiu a berrar. Nem uma gota de suor perlara a testa de Ardente. Habituado a bater-se desde os cinco anos, sofrera severos correctivos antes de aprender os golpes vencedores. Seguro da sua força, não gostava de provocar mas nunca recuava. A vida não dava brindes, ele também não». InChristian Jacq, A Pedra da Luz, Néfer, O Silencioso, Bertrand Editora, 2000, ISBN-978-972-251-135-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT