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Keter
«(…) É dessa forma na verdade que se entra no Conservatoire des Arts et
Métiers, em Paris, depois de se haver passado por um pátio setecentista, e
avançando pela velha igreja abacial, engastada no complexo mais tardio, tal
como foi outrora engastada no priorato de origem. Ao entrarmos, somos ofuscados
por essa conspiração que congrega o universo superior das ogivas celestes e o
mundo octânico dos devoradores de óleos minerais.
Espalhados pelo chão, um cortejo de veículos automóveis, bicicletas e
carroças a vapor; no alto ameaçam as máquinas aéreas dos pioneiros da aviação,
e em alguns casos os objectos expostos são os originais, embora descascados ou
corroídos pelo tempo, e ali todos juntos aparecem, na luz ambígua em parte
natural e em parte eléctrica, como cobertos por uma patina, por um verniz de
violino antigo; vez por outra surgem esqueletos, chassis, desarticulações de
bielas e manículas que ameaçam inenarráveis torturas, e te pões a imaginar-te
atado a essas camas de suplício donde pode surgir de repente alguma coisa que
te embarafuste pela carne e te leve à confissão fatal.
E para além dessa seqüência de antigos objectos móveis, agora imóveis, de
alma enferrujada, puros signos de um orgulho tecnológico que os quiseram
expostos à reverência do público, velado à esquerda por uma estátua da
Liberdade, modelo reduzido daquela que Bartholdi havia projectado para um outro
mundo, e à direita por uma estátua de Pascal, abre-se o coro, onde, fazendo
coroa às oscilações do Pêndulo, encontra-se o pesadelo de um entomólogo enfermo,
quelas, mandíbulas, antenas, proglótides, asas, patas, um cemitério de
cadáveres mecânicos que poderiam voltar a funcionar todos ao mesmo tempo,
magnetos, transformadores monofásicos, turbinas, grupos conversores, máquinas a
vapor, dínamos, e, ao fundo, além do Pêndulo, no ambulacro, ídolos assírios,
caldeus, cartagineses, grandes Baals de ventres outrora incandescentes, virgens
de Nurembergue com os seus corações hirtos de cravos postos a nu, aquilo que no
passado foram motores de avião, indizível coroa de simulacros que jazem em
adoração ao Pêndulo, como se os filhos da Razão e das Luzes tivessem sido
condenados a custodiar pela eternidade o próprio símbolo da Tradição e da
Sabedoria.
E os turistas enfadados, que pagam os seus nove francos na caixa e entram
de graça nos domingos, poderão acaso pensar que os velhos senhores do século
XIX com a barba amarelecida pela nicotina, o colete amarrotado e sebento, a
gravata negra e desbotada, a sobrecasaca cheirando a rapé, os dedos escurecidos
pelos ácidos, a mente azedada pelas invejas académicas, fantasmas de vaudeville
que se chamavam reciprocamente de cher maitre, haviam colocado tais objectos
sob aquela abóbada por uma virtuosa vontade expositiva, para satisfação do
contribuinte burguês e radical, para celebrar os magníficos feitos do
progresso? Não, de modo algum; desde o princípio como priorado e em seguida
como museu revolucionário, Saint-Martin-des-Champs tinha sido concebida como
silogeu das ciências ocultas, e todos aqueles aeroplanos, aquelas máquinas
automotrizes, aqueles esqueletos eletromagnéticos estavam ali a entreter um
diálogo cuja fórmula ainda me escapava.
Deveria crer, como me propunha hipocritamente o catálogo da exposição,
que a bela empresa fora idealizada pelos senhores da Convenção para tornar
acessível à massa um santuário de todas as artes e ofícios, quando me era assaz
evidente que o projecto, as próprias palavras usadas, eram as mesmas com que
Francis Bacon descrevera a Casa de Salomão na sua Nova Atlântida? Seria
possível que apenas eu, eu e Jacopo Belbo, e Diotallevi houvéssemos intuído a
verdade? Naquela noite talvez obtivesse a resposta. Aconteceu que havia
conseguido permanecer no museu além da hora de encerramento, e aguardava agora
o soar da meia-noite. Por onde Eles haveriam de entrar era algo que ainda não
sabia, suspeitava que ao longo da rede de esgotos de Paris uma conduta qualquer
ligasse um ponto do museu a outro ponto da cidade, provavelmente próximo à
Potte-St. Denis, mas sabia com certeza que, se tivesse saído do museu, não
haveria de conseguir entrar por aquela parte. Por isso, devia esconder-me e
permanecer lá dentro. Procurei fugir ao fascínio do lugar e tratei de observar
a nave com olhos frios. Naquele instante, não buscava uma revelação, mas sim
uma informação. Imaginava que nas outras salas seria difícil encontrar um canto
onde pudesse fugir ao controle dos vigias (é oseu dever, na hora de fechar,
percorrer as salas para verificar se algum ladrão não se oculta em algum
canto), mas aqui na nave, atulhada de veículos, poderia haver melhor sítio para
um passageiro ocultar-se em algum lugar? Esconder-se, vivo, num veículo morto.
Já havíamos feito tantos ardis, que não custava nada tentar mais este. Coragem,
ânimo, disse para mim, não pensemos mais na Sapiência: pede à Ciência que te ajude».
In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea
(Difel), 2008, ISBN 978-846-125-726-3.
Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT